Gardênias antagônicas
Gardênia da Costa alia o artesanato com o trabalho social
Brunna Tavares
Gardênia é símbolo da pureza, da inocência e da doçura, adjetivos normalmente ligados à quietude e à timidez. A flor exala um aroma tranquilizante, quase anestésico. O contrário da artesã Gardênia da Costa Silva, que tem perfume estimulante.
Enquanto fala sobre seu amor pela arte, ela demonstra entusiasmo e paixão. Sempre soube produzir com as próprias mãos, mas só se dedicou ao artesanato depois de mais de uma década praticando integralmente outra arte: a de ensinar. Já foi professora de Biologia, Química, Matemática, Artes e Ensino Religioso em muitas escolas da cidade.
Gardênia descobriu sua vocação para o artesanato na adolescência desafiada pelo pai. (foto: Daniel Sena)
Nasceu em Picos do Piauí, e mora em Imperatriz, no Maranhão, desde os cinco anos de idade. O artesanato é sua principal profissão há cerca de seis anos, mas foi ainda na adolescência que descobriu sua vocação. “Meu pai chegou com um pedacinho de pulseira de miçanga, jogou em mim e disse assim: ‘quero ver se tu consegue fazer’. Eu fiz a pulseirinha e entreguei pra ele no outro dia. Foi aí que comecei a perceber que eu tinha uma visão diferente das coisas”. Esse foi o primeiro desafio que Gardênia superou, mas não parou por aí.
Quando mantinha um box no Centro de Artesanato, recebia todo tipo de pedido de peças extraordinárias que vez ou outra faziam com que ela quebrasse a cabeça para elaborar. Encarava a missão como a da pulseira que seu pai pediu um dia e desvendava a produção da peça como quem decifrasse as voltas e nós que a linha fazia ao redor das miçangas. “Se eu for desafiada, vou dar o meu máximo para fazer [a peça]”.
Depois de um divórcio e de um período de desemprego, Gardênia passou a se dedicar mais ao artesanato. Tudo começou por brincadeira, pesquisas na internet a levaram a vídeos que despertaram a artesã adormecida. Produziu peças, vendeu para seus amigos e se especializou. Integra a Associação de Artesãos de Imperatriz (Assari) e expôs o seu trabalho por um período no Centro de Artesanato, além de feiras, eventos municipais, regionais e até nacionais.
Atualmente Gardênia é contratada no Centro de Referência da Pessoa Idosa, como oficineira de artesanato. “Continuo com a atividade de artesã, mas agora estou ensinando as técnicas aos idosos”.
Para Gardênia o dinheiro que consegue com o artesanato é mais uma consequência do que uma condição. Ter seu trabalho respeitado e reconhecido é satisfatório, mas esse sentimento não ocupa mais espaço do que o seu amor pela produção de sua arte. Tanto, que suas peças preferidas na hora de criar são as mais complicadas, as que levam mais tempo, mais material e estudo.
Peças como "as negras"exigem mais tempo de preparo e acabamento. (foto: Daniel Sena)
A artesã experimenta de tudo, desde bonecas que chama de “as negras”, feitas de canudinhos de papel, até filtros dos sonhos e mandalas de linha. Também trabalha com feltro, pintura, papel machê e bijuterias. Além de aceitar desafios de vez em quando. Cada peça pode demorar algumas horas para ficar pronta, ou até mesmo dias.
As "negras", por exemplo, são o processo mais demorado. Primeiro ela prepara o esqueleto com os canudinhos de papel, que demoram um dia inteiro para secar. No dia seguinte é a vez da decoupage (arte de usar recortes de papel decorado para revestir um objeto). Segue mais outro dia de secagem, em seguida a pintura e depois o acabamento. “Artesanato, é produzido com a mão, é pensado, é planejado, então requer muito tempo”, justifica a artesã.
Cada peça é única, possui sua própria história, ou possuirá, quando quem a adquirir se atribuir dela. As peças de Gardênia carregam um pouco de sua personalidade, de suas cores. “Eu procuro deixar o mais colorido possível, é minha alegria que vai para dentro da casa das pessoas, minha emoção”, explica. Os sentimentos de uma artesã estão escondidos nas formas que ele constrói, a arte é o espelho do artista, de sua alma. Como vender um pedaço da sua alma?
“Houve um tempo em que eu estava muito mal, e fiquei muito tempo sem produzir. Quando recomecei eu fiz um dragão, que acabou virando uma peça única, não consigo me desfazer dele. Porque é algo que marca uma época, minha história. Essa é a dificuldade de vender um produto: você faz com esse apego emocional e às vezes fica difícil entregar a peça”, reflete.
Embora algumas obras sejam apenas pedidos de clientes – e não uma manifestação de sentimentos como foi o caso do dragão, todas levam um pedacinho da artesã. Seja nas cores, nas formas ou no conjunto inteiro. Gardênia se deixa em suas peças, assim como costumava deixar um pedaço de si na sala de aula.
“Uma vez professora, para sempre professora.” Ainda que não esteja exercendo a profissão como da primeira vez, continua ensinando. Desde que começou a se especializar na produção artesanal, faz questão de passar o conhecimento adiante, a partir de oficinas, cursos e parcerias com instituições locais, como o Instituto Estadual de Educação Ciência e Tecnologia do Maranhão (Iema).
Também tem boas lembranças do trabalho que desenvolveu na Funac (Fundação da Criança e do Adolescente do Maranhão), que ocupou um espaço especial em seu coração. No período, ministrou aulas de artesanato para jovens de 15 a 19 anos, que estavam cumprindo medidas socioeducativas na instituição.
“Além do fator terapêutico, esses adolescentes, na maioria das vezes, estão sem perspectiva de vida e podem ver, no artesanato, que possuem outras habilidades. Essa foi minha missão ali, meu dom, passar adiante todo o meu conhecimento para a maior quantidade de pessoas possível”.
Quando indagada sobre como seria sua vida sem o artesanato, Gardênia se viu sem palavras. Mesmo que tenha vontade de voltar a dar aulas, não se vê abandonando o artesanato. “Se isso acontecer [mudar de profissão], o artesanato sempre faria parte da minha vida, porque a arte faz parte da vida da gente em todos os momentos”, responde.
A artesã acrescenta que poderia até mesmo incluir na nova profissão as técnicas que já conhece de artesanato. “Ou iria fazer por diversão, ou iria ensinar, ou fazer para presentear. Mas me ver sem a arte, sem o artesanato é impossível”.
Gardênia considera que o período da pandemia da Covid-19 trouxe muitas oportunidades para o artesão. “Tivemos editais do Estado e do município voltados para o artesanato. O artesão que participou teve uma boa renda”.
Outra questão, segundo Gardênia, é que muitas pessoas procuraram o artesanato como “uma fuga e um passatempo de tudo o que estava acontecendo”. Seus planos futuros são de continuar a produzir artesanato para alguns eventos, ensinar técnicas artesanais para crianças e mulheres em situação de risco e, futuramente, ter uma exposição própria de peças exclusivas.
Para ela, é mais do que dinheiro, um passatempo, e até mais do que uma profissão. A arte é quem ela é, quem sempre foi. É tão impossível separar Gardênia do artesanato quanto é provável separá-la da flor, tranquila e quieta. Gardênia, a mulher, é feroz e apaixonada, como sua arte.
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