A cena que resiste
Artistas locais relatam histórias e desafios sobre a cena musical alternativa
por Sofia Alves
A cena alternativa em Imperatriz é marcada pela resistência em busca de reconhecimento e visibilidade. Os artistas locais enfrentam dificuldades, que vão desde a falta de público nos shows até a escassez de parcerias para a organização de eventos.
Bruno Aguiar, 44 anos, relata que suas influências vieram do pai, que o fez crescer em um ambiente voltado para o rock. Já aos 12 anos, suas vertentes mudaram para músicas com letras mais pesadas e um gênero de metal extremo: “Comecei a ouvir death metal, e bandas como Cannibal Corpse e Morbid Angel. Nessa época, a gente comprava os LP’s, colecionava os zines [publicações artesanais independentes]. Esperava meses para chegar os LP’s que cada um comprava diferente”, relata o músico e administrador, que se refere à adolescência com os primos e amigos.
Ele é fundador de uma das bandas mais antigas da cidade, Mortos, que está em atividade desde 2002, e serve de referência para muitos músicos locais. Tudo surgiu com o desejo de Bruno tocar bateria. Em parceria com Vinicius, antigo integrante, fundaram o grupo e sempre focaram sua produção no autoral. “Sentimos a necessidade de fazer um festival de rock aqui. Chamamos quase todas as bandas da cidade e fizemos o primeiro Super Festival de Rock and Roll de Imperatriz, lá pra 2002”, lembra Bruno.
Banda de Bruno está na ativa desde 2002, e é uma das mais influentes da cidade. (foto: acervo pessoal/Instagram)
Hérykles Pôrto, 36 anos, participa da cena alternativa desde os anos 2000, e revela suas experiências locais na época. “Em 2001 para 2002 foi quando começou a popularizar um pouco mais aqui na cidade. A primeira vez que eu fui num evento, que eu vi aquela galera toda de preto, que eu vi ao vivo uma guitarra sendo tocada, zoada de uma bateria, eu fiquei assim: ‘Caramba, que massa, é isso que eu quero’”. Uma de suas maiores influências foi a banda Mortos, que Hérykles viu tocar na Praça da Cultura, no seu primeiro contato com o gênero de metal extremo.
O músico também relembra de sua adolescência, nos anos 2000, quando jovens da mesma faixa etária se encontravam no estacionamento do Shopping Timbira, aos sábados, e depois desciam para a Beira-Rio. Lá, ouviam músicas juntos e compartilhavam suas vivências adolescentes. “O Timbira Shopping era o point da galera de preto. Sábado, a partir das 16h, todo mundo começava a acionar pra lá. E aí se juntava, ficava a galera no estacionamento, todos iam lá pra cima, do lado de onde era o cinema, no janelão. A cidade não oferecia muito local de encontro, onde desse pra gente ir”, explica Hérykles.
Hérykles Pôrto (dir.) e amigos se reuniam no shopping Timbira no início dos anos 2000, para debater rock. (foto: acervo pessoal)
Um dos eventos relatados por Hérykles foi o Terremoto, que ocorria no ginásio da Associação Médica. Comportava bandas da igreja e outras sem vínculos religiosos, e era uma tentativa de estimular uma fusão de públicos diversos para prestigiar a música alternativa local.
Apesar de hoje em dia as casas de show terem avançado para entregar uma melhor qualidade de som e ambiente, o público era mais participativo no passado. “Tinha na Associação Médica e num bar ali pertinho da Praça da Cultura, chamado TNT. Era um barzinho minúsculo, onde a banda praticamente tocava em cima da mesa de sinuca que tinha no meio”, recorda Hérykles.
O músico Gussan Santos, 37 anos, um dos mais antigos produtores de eventos do gênero na cidade, lembra quando conheceu o universo alternativo, em meados de 2005. As suas influências foram os amigos de escola e os shows de músicos locais. “Na época que comecei a andar nos shows, tinha três bandas que eu curtia muito: Narcan, Unborn e Mortos. Mas uma que me fez criar uma banda foi a Unborn”.
Alternando a música com as organizações de eventos, Gussan sempre se manteve no cenário alternativo da cidade, fazendo amizades Brasil afora e produzindo festivais com atrações internacionais. Uma das suas produções mais memoráveis foi o Hell Rock Festival IV, que aconteceu em 2015, na Usina Cultural. Com todos os ingressos esgotados, reuniu seis bandas, sendo três de fora e as demais locais. Em 2016, houve mais uma edição, com grupos que estavam em turnê pelo Brasil.
Hell Rock Festival contou com diversas edições, em sua maioria organizadas por Gussan. (fotos: acervo pessoal)
Um lugar na cena
Após a saída de alguns integrantes ao longo dos 22 anos da banda Mortos, o grupo conta hoje com André Cavaignac no baixo e vocal, Ruhan Saldanha na guitarra e vocal e Bruno Aguiar na bateria. Todos os integrantes têm outras profissões, e mesmo com duas décadas de carreira, a banda se tornou mais um passatempo. “A partir do momento que a música não é um hobby, ela se torna chata, tem que fazer pelo coração, o feeling, senão fica algo mecânico”, considera Bruno.
Conselhos motivacionais de Samuel Slanderer, então vocalista da Unborn, incentivaram Gussan a aprender a tocar e eventualmente montar sua banda, a Desterro, em 2007. A escolha do nome tem uma origem curiosa. “Peguei o dicionário, abri e deixei rolar as páginas, onde meu dedo parasse iria ser o nome”. Gussan parou na palavra Desterro, o nome de uma santa, que foi ressignificado para o meio musical, e a partir daí a história do grupo começou a ser traçada.
Banda Desterro fazendo um show em Porto Nacional, no Tocantins, em 2018. (foto: acervo pessoal)
Já no caso de Hérykles, sua entrada na carreira musical começou com a banda Fator 3, que segundo o músico, significa Pai, Filho e Espírito Santo, mas durou apenas alguns ensaios. O músico já integrou diversos grupos em sua trajetória, com nomes bem ousados, como Pimenta Roxa, Opala 69 e até mesmo Porco Aranha, que teve influência de um famoso desenho animado dos Estados Unidos. “Na época tinha saído o filme dos Simpsons, eu pensei em colocar Porco Aranha. Os caras ficaram meio assim... mas falaram: ‘Bora tentar!’” Hoje Hérykles participa da banda Verso Reverso, formada em 2019 com o intuito de apresentar músicas autorais.
Herykles Porto à direita, tocando na primeira edição do evento MotoImp, em 2015. (foto: acervo pessoal)
Os processos criativos para compor as músicas surgem de maneira singela, com a participação de todos os integrantes. Pode ser o guitarrista fazendo seu riff, uma sequência de acordes, notas ou padrões melódicos repetitivos que servem como base instrumental, ou até mesmo o baterista acompanhando os demais.
“Na minha visão, a chance de progressão, de fazer sucesso no desenvolvimento, é mais de quem faz o próprio som. E é o caminho que a gente também tá tentando trilhar”, ressalta Hérykles.
Ryan Santos, 23 anos, que tem o nome artístico Crazy Diamond, conta que a música entrou em sua vida quando criança. “Conheci o rock por conta de videogame. Lembro que eu ia pra lan house ficar pesquisando as músicas que eu escutava no Guitar Hero”, conta, referindo-se ao jogo. O músico e também professor de inglês, relata que é de Grajaú (MA), e veio para Imperatriz em 2022.
Ao começar a frequentar shows de rock, se sentiu encorajado para criar sua própria banda. Suas inspirações são as do gênero grunge, como Nirvana e Alice in Chains. “Pouco tempo antes de me mudar pra cá, fui num festival chamado Rock On. A banda Alcoólica já começou tocando School, do Nirvana, uma música meio lado B”. Por se tratar de uma canção menos conhecida, o artista ficou surpreso com a escolha. Após comparecer em mais um evento de música underground, Ryan sentiu vontade de reunir o público para tocar junto.
“No início eu até dei uma romantizada na ideia de formar a banda pra mostrar pra galera: ‘Pô, se tu sabe tocar, se tu tem uma guitarra, reúne a galera e mete a cara’”, ressalta Ryan. Ele se refere ao seu processo criativo para a formação do que, no futuro, viria ser a Brain Damage. O primeiro membro da banda foi o baterista Rui Guilherme (hoje da Upperdog), que Ryan avistou no festival Rock On. “Lembro de olhar para o cara e falar: ‘Esse aí conhece’”. O músico reencontrou o baterista meses depois em um evento alternativo, e o convidou para seu projeto. Após a saída de alguns integrantes, a banda conta atualmente com Ryan no vocal e guitarra, Danilo Leite como segundo guitarrista, Carlos Junior na bateria e Mateus Reivax no baixo.
A banda tem influências de grupos mundialmente conhecidos, como Pink Floyd. O álbum The dark Side of The Moon (1973) conta com a faixa Brain Damage, que serviu como referência para nomear o grupo imperatrizense. “Pensei na caveira derretendo, pensei no conceito: ‘Ó, por que está derretendo? Pensou demais? Teve um dano cerebral?’ Essas ideias que tive”, relata Ryan, sobre a criação da identidade visual.
Logo da banda Brain Damage agrega referências de bandas influentes do rock alternativo. (foto: acervo pessoal)
Tiago Souza, 22 anos, destaca que para ser alternativo, não necessita de influências ou elementos impostos: “Você pode tentar querer ser, mas dentro de você tem outra coisa, né? Então a pessoa já nasce alternativa, já tem um gosto pelas coisas diferenciadas”. Integrante da Controvérsia, ele compartilha suas experiências no cenário alternativo local. “A banda surgiu no final de 2022, por conta do guitarrista e do baterista estarem cansados de tocar o rock clássico, o rock simples”, explica. Controvérsia é uma banda que se aprofunda nos subgêneros de black, thrash e death metal, que tem menos fãs na região.
As performances são traços marcantes na banda de Tiago, que utiliza elementos originais e que sejam mais chocantes possíveis. “Desde as vestimentas, maneira como canto, as atitudes que faço, confrontar religião e política, nossa intenção é essa. Quanto mais pesado for, melhor ainda”, explica o músico. Atualmente o grupo conta com quatro integrantes que também circulam em outras bandas da cidade: Tiago Souza no vocal, Danilo Leite, guitarrista (também da Brain Damage), Carlos Junior, baixista (Upperdog e Brain Damage) e Yan Cardoso, baterista que integra, ainda, a Desterro.
Tiago e Ryan no Bananal Rock, evento que contou com a participação da banda de ambos. (foto: Loba Fotógrafa)
Os ensaios são uma das dificuldades relatadas pelo músico, pois todos os componentes têm profissões além da música. Assim, os encontros entre os integrantes são mais curtos e menos frequentes. As contratações para shows também geram queixa entre os artistas, pois alguns contratantes impõem regras para tocar em determinados eventos, o que limita a liberdade de expressão dos músicos. “O pessoal que estava organizando, quando viu nossa banda mandou várias indiretas pra gente não cantar as músicas com tal letra. Decidimos sair fora, porque não é nosso intuito”. Tiago acrescenta que as performances e letras ousadas são uma forma de luta e resistência.
O músico também conta detalhes de um vídeo da banda que viralizou nas redes sociais em 2023. As imagens mostram o cantor em uma performance vestido de Jesus e com corpse paint, pintura facial em preto e branco, muito utilizada por bandas de black metal. A apresentação em questão ocorreu em 2023, no evento Luau Cultural, na Beira-Rio.
Apesar da grande repercussão, acumulando cerca de 1,8 milhões de visualizações e chegando a perfis de metal do México, Estados Unidos e até mesmo Rússia, a Controvérsia acabou enfrentando dificuldades com a grande exposição. “É por conta desse vídeo que a gente não consegue se apresentar em muitos lugares. Estava até com medo de fazer um próximo show e acontecer algo, porque chegava a receber ameaças”, explica Tiago. Performar à caráter já era uma vontade antiga. Após muitas comparações com a figura religiosa, ele decidiu trazer uma releitura voltada para o meio alternativo.
Obstáculos
Gussan Santos acredita que as plateias reduzidas fazem com que a frequência dos eventos voltados ao rock seja menor. “Hoje em dia, com a baixa de público nos shows, não dá mais pra fazer cartazes. A divulgação não é como antes, hoje é mais Facebook, Instagram e WhatsApp”, comenta.
Com pouco tempo na cena local, Ryan Santos, o Crazy Diamond, enfrenta dificuldades, seja por conta da falta de espaço ou da ausência de público. “As bandas mais famosas são amigas de donos de bares, não dão espaço para bandas como a gente, da cena mais underground”, reclama.
A sua banda, Brain Damage, precisa se deslocar para cidades vizinhas como Açailândia pois, no cenário local, as oportunidades são quase nulas. Uma de suas preocupações é com a redução da plateia nos eventos da região. Apesar do empenho em produzir shows de qualidade, as casas de shows e festivais organizados até mesmo pelos próprios músicos, não conseguem atrair um número significativo de pessoas.
Brain Damage em show do festival Atomic Rock. (foto: Suzy Negreiros)
O baterista Bruno Aguiar também participa há nove anos do Abutre's Moto Clube, fundado em São Paulo há 35 anos e que está em diversas cidades do país. Bruno é diretor do grupo em Imperatriz, e precisa estar por dentro do que acontece com a vida dos “motoqueiros irmãos”, como são chamados os participantes, sempre orientando e se preocupando com a questão familiar do grupo. Ações sociais se implementam no estilo de vida de um abutre, fazendo com que o motoclube tenha sido agraciado com o título de Honra ao Mérito de Responsabilidade Social, pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Em Imperatriz, sua sede conta com quartos para os motociclistas que estão de passagem pela cidade. O espaço tem churrasqueira, área para shows e um bar totalmente estilizado pelos participantes.
O Abutre's Moto Clube também serve como casa de shows para alguns eventos alternativos. (fotos: Sofia Alves)
Apesar de sua vasta experiência no cenário alternativo, Bruno não deixa de relatar suas queixas relativas à cena local. “Algumas pessoas se esforçam e vem, mas a maioria não comparece. Isso faz com que enfraqueça, a gente tira dinheiro do próprio bolso para organizar”, reclama. O músico que participou da organização de diversos eventos alternativos na cidade, já trouxe bandas da Noruega, Estados Unidos, Suécia, e outras que estavam fazendo turnê pelo Brasil. Ele comenta que a reclamação quanto ao valor dos ingressos e a ausência do público, faz com que as organizações de eventos sejam cada vez mais escassas.
Imperatriz fez parte da rota de turnês de bandas internacionais. (fotos: acervo pessoal)
Sugestões
Aos olhos de Gussan, a cena alternativa na cidade é forte, mas a frequência de público nos shows é muito escassa. A ausência de apoio desestimula ainda mais as bandas e organizadores de eventos a produzirem os festivais locais. “Aqui melhoraria mais se tivesse uma casa de show que apoiasse a cena”, sugere.
Para o vocalista Tiago, é crucial que as pessoas ampliem suas expectativas e se unam, sem distinção de grupos alternativos, como emos e punks, que historicamente têm rixas no meio underground.
Segundo o músico, se apegar excessivamente ao passado impede diversos grupos de interagirem e organizarem eventos juntos. “A galera precisa abrir mais a mente e se unir pra fazer o negócio acontecer, organizar os eventos, chamar as bandas, é preciso parar de relembrar o passado”, defende.
Tiago também enfatiza que é preciso uma comoção do público, tanto em presença, como tomar frente na divulgação, pois a falta de empenho da comunidade em termos de marketing e organização é um dos principais obstáculos para o crescimento da cena e dos artistas locais.
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