A rua que tudo viu, tudo foi
Um relato inusitado da XV de novembro, a primeira rua da cidade
Marcus Marinho
Caminhava tonto pela rua, já tarde da noite, nem lembrava mais que horas tinha saído de casa. Sentou num banco pra espairecer, bebeu demais, precisava se acomodar. Ali sentado no meio da rua XV de novembro, organizou os pensamentos e percebeu o porquê de ter bebido tanto: “Solidão”.
“Só queria conversar... um bom papo... com quem quer que seja”, pensava, olhando as árvores do canteiro central. Talvez estivesse muito bêbado, ou batido a cabeça em algum lugar, por um minuto pensou até estar louco. Mas aquela rua, ela estava… falando com ele, convidando pra um papo. No estado que se encontrava nem pensou muito no caso, lá estava ele trocando ideias com os blocos de pedra.
— Sabe, como primogênita da cidade devo dizer que já vi de tudo, nasci na época da lamparina, vi de frei a prefeito, de sorriso a desespero — dizia a rua ao bêbado — Vi a cidade crescer e novos braços se ramificaram, becos, vielas e ruas brotaram para a minha companhia. Vi a história se passar pelo meu corpo, transcender a minha alma. Histórias essas que guardo na memória, como cada bloco de concreto pisado e encaixado em seu devido espaço. Desde a marcha dos desfiles de 7 de Setembro da escola Santa Teresinha, até as duas balas que mataram o prefeito Renato Cortez, ali, em frente ao Mercado Municipal. Estava lá do dia mais festivo, ao mais lamentoso.
Rua XV de Novembro era palco de desfiles em comemoração ao 7 de Setembro (foto: acervo histórico Santa Teresinha)
Ele ouvia atentamente, enquanto ela falava de si:
— Olha… ao mesmo tempo que vi, também fui. Fui Rua Grande, quando era a maior delas, fui Rua de Dentro, depois da chegada de minhas irmãs. E um dia, de XV de Novembro me nomearam, uma homenagem à Proclamação da República, que também testemunhei. O céu banhava celeste naquele dia, exatamente como pintou Benedito Calixto. Céu esse que acompanho de domingo a domingo a programação diária, deitada aqui no chão. — Proseava cada vez mais empolgada — Até hoje sou XV de Novembro, apelido carinhoso, mas aos mais próximos basta: "Quinze". Meu nome de certidão já é outro, em reverência ao fundador da antiga Colônia Militar de Santa Teresa, hoje Imperatriz, foi me dado o título do saudoso e versátil Frei Manoel Procópio. Frei Procópio também muito foi, temos isso em comum, talvez por isso mereci tal honra.
O bêbado até pensou em reclamar de tamanha falação, mas o fôlego da rua era tanto que ele mal conseguia se situar nos pensamentos, que já estavam tontos por causa do álcool.
— Essa troca de artigos me trouxe mais pomposidade, sabe? Dentre tantos nomes me busco em diversas personalidades. Sou antiga, mas também contemporânea, sempre junto à juventude que gosta de um bom barzinho no fim de semana. Do frevo e da fé, não perco a procissão e também pulo todo carnaval. Santa Teresa me acompanha, e com essa sorte eu posso contar, é pra ela que sempre rezo em proteção ao povo que aqui por perto mora. Aos Cortez, os Milhomem, os Moreira e os Rocha, esse povo todo em minhas curvas, morador ou visitante. Até aqueles que compram aquele vinho barato pra beber com os amigos sentados em minhas pernas, pessoas como você.
A rua se aquietou um pouco e o bêbado ficou pensativo por uns minutos, mas logo se levantou e saiu a perambular de novo. Provavelmente percebeu que, em comparação à rua, ele não tinha nada para conversar, ou talvez só estivesse muito alterado.
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