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Tio Adorno na realidade paralela dos doramas

Diálogo para testar os nervos do rabugento teórico alemão


Texto e ilustração: Luiza Ribeiro


Hadassah mandou mensagem às 9h12. Mas, como demoro a responder, ligou:


— Vê a mensagem que te mandei! — E desligou.


Na realidade, não era ver, era ouvir. E tinha seis minutos. Não me atrevi a terminar e nem a ter a parvoíce de acelerar. Achei melhor ligar de volta.


— Mulher, vou pra tua casa daqui a pouco. Aí a gente conversa, ok?


— Ok.


E desligou. Afetuosa.


Saí antes de terminar meu texto, passei na recepção para pegar um café e fui-me.

Seu Adorno abriu a porta como sempre. Estava ao telefone. Provavelmente numa prosa com um velho amigo igualmente músico e ranzinza.


— Boa tarde, Seu Theodor! Como o senhor está?


— Com dor de cabeça. Hadassah passou dois dias assistindo banalidades sem diminuir o volume da televisão e não pude ouvir o concerto que Max me recomendou. Ich bin fast verrückt geworden!


— Verdammt, wie langweilig...


Foi o que decorei de alemão para responder às reclamações do velho.


Subi as escadas, abri a geladeira e logo vi as embalagens sem rótulo, já que o homem não suporta nem mesmo a estética com finalidade mercadológica na garrafa de Schweppes. Hadassah estava ouvindo "Every single day", dançando e cantando loucamente quando cheguei no quarto.


— Ah, finalmente! Vem! “... himeul nae syupeo pawo geol, deo isang mangseoriji ma, jiguui pyeonghwareul wihae, oneuldo dallyeogaaa...”


— Agora eu entendo teu tio! – E desatei a rir (não sem antes participar da balbúrdia).


Depois de uma hora e meia gralhando palavras em tons dissonantes, e por vezes agudos, sobre Strong Woman Do Bong Soon (doramas produzem tal efeito nas mais entusiastas), fui à sala e ela à cozinha: ela para preparar o lanche e eu, para esperá-lo. O velho Adorno, sempre estoico e compenetrado nos livros, era visível em seu escritório no fim do corredor. Levantando os olhos por sobre os óculos, reparou quem o observava e decidiu abandonar um pouco a postura taciturna de quem está sempre pronto a ouvir, e mais pronto ainda a criticar, para me fazer sala. Sentou-se na poltrona à minha frente e começou:


—Moça, gostas das composições de Tchaikovsky?


Achei inusitado, mas respondi:


—O mundo teria menos beleza se ele não as tivesse feito.


A resposta pareceu agradar o homem.


—Certamente. Suas óperas, sinfonias, balés, suítes, concertos e obras corais são definitivamente pitorescas, não? Evocam uma profunda resposta emocional. Podem tocar o mais embrutecido dos seres pela sensibilidade de sua harmonia!


Até esse ponto, fiquei curiosa para ver onde descambaria essa conversa. Exultante, continuou:


—Ah... não havia espaço para o vulgar e generalidades! O consumo era como um conta-gotas, e não um cano de descarga incessante e porca, que sempre traz sujidades recicladas e reutilizadas que serão armazenadas para mais outro ciclo... E eu que em tempos passados considerava a televisão a mais frívola das invenções!


Mal sabia eu o que por mim esperava!


O sujeito estava transtornado e suava, suas veias saltavam e seu rosto estava vermelho.


Da porta da cozinha, Hadassah me encarava mangando da cara do tio com aquele jeito de “não repara, não, miga”. Fiquei sem reação, afinal, Theodor parecia estar muito convicto do que dizia. É insensatez ignorar o peso que os cabelos brancos têm sobre seu entendimento, com certeza, mais vasto que o de uma caloura. Enquanto se recompunha, refleti em suas palavras sobre o cano de descarga.


—O senhor entende que não há nada de bom naquilo que a mídia produz? – indaguei.


—Acreditar em tal coisa me faria mais descrente do que já sou. Na realidade, o que há de bom vem misturado com lixo. Veja, Luiza, na produção pavorosa que você e minha sobrinha tanto gostam, pelo que denotei das conversas que ouvi – e creio que todo o prédio também – existem críticas sociais à Coreia do Sul: o ostracismo econômico a que jovens sem formação acadêmica são relegados; o tratamento extremamente desrespeitoso dado às mulheres por parte de muitos homens independentemente da idade, bem como a insegurança que elas têm de andar na rua desacompanhadas à noite; a visão simplista da necessidade do casamento com alguém de status mais elevado e a pressão social que as jovens sofrem para tal união... Ousou-se ainda aludir à homossexualidade, que é um assunto quase intocável da mídia coreana... Consegui apreender bem?


—Ó se conseguiu! Parece um resumo que eu faria...


—Pois bem. Esse filme seriado, é ... qual é o nome correto?


—Geralmente chamamos de “dorama”. Mas isso se refere às produções da TV asiática como um todo. O que vimos foi um drama coreano, ou k-drama.


—Certo. Ele tem um princípio que perpassa todo o roteiro: a protagonista é uma jovem aparentemente frágil, que tem uma força extraordinária e a usa para ajudar aqueles que dela necessitam, principalmente reagindo às tentativas de dominação de seus opressores.


Interrompi momentaneamente:


—Ok, ok. Até agora só coisas boas. Quando começa a elogiar demais, já pressinto lapada grande.


—E pressente bem – retorquiu rapidamente – Todos esses assuntos foram trabalhados, mas com superficialidade. Tudo foi preparado para tornar o romance dos protagonistas possível. No final das contas, só houve a mesma manipulação onde todos já pressupõem o fim. As emoções já vêm prontas e embaladas para consumo. A novidade é como um zíper novo em uma calça velha que já está modelada ao corpo de quem a usa.


Convenhamos que responder à altura não é tarefa fácil. Olhei no relógio, tinha tempo. Olhei para a mesa, Hadassah já estava colocando a jarra de suco e se mantinha propositalmente alheia à conversa. Pedi que continuasse enquanto esperávamos a merenda da tarde na mesa ao lado. Hadassah estava preparando o cuscuz recheado que pedi.


—Senhor Adorno, entendo teu ponto de vista. Mas não achas muito exagero?


—De maneira nenhuma. A indústria cultural tem se servido de banalidades para alienar as pessoas daquilo que realmente importa e destruir culturas. Veja você que termo mais representativo, “indústria”. Ela vem carregada de uma imagem fabril: uma esteira onde os trabalhadores estão alheios ao produto final, só usam sua chave de fenda para apertar o parafuso de uma peça do motor de um carro. E estão felizes com isso! Não lhes importa se os carros sairão todos iguais ou se terão os lucros das vendas, o que importa é fazer parte da construção de uma máquina que não funcionaria se eles não estivessem lá. Só há dono de fábrica porque há quem lhe seja dependente e subalterno, só há indústria cultural porque há quem dela demande e dela faça parte. O que há é dominação.


Hadassah pôs torradas e a garrafa de café.


—Entendo..., mas, vejamos. Nem todos pensam como o senhor. Há os que não concordam, porém, há os que não têm condições de concordar porque não têm condições para isso. Sei que o senhor está tentando se acostumar com o Brasil – convenhamos, até eu estou tentando isso – mas talvez não saiba das realidades sociais e culturais daqui. Só de analfabetos temos 10 milhões, fora os analfabetos funcionais, que entendem as palavras, mas não seus significados. A democratização do acesso à informação e às mídias em geral é uma ferramenta poderosíssima para a veiculação de particularidades culturais e educação para a população em geral. O senhor acha que Tchaikovsky vai tocar tão fundo num sertanejo quanto Dominguinhos e Luiz Gonzaga? Claro que não! E por quê? Porque Gonzaga fala de um jeito que o sertanejo entende. Isso mostra que a Indústria Cultural não se vale simplesmente da destruição de uma cultura, mas se molda a uma, modifica algumas e substitui outras. Esse processo é sempre bom? Luísa Sonza nos prova que não. Mas ao menos ela é explícita: não tem o que abstrair. Qualquer um entende o que ela diz, mas nem todos entendem o que Puccini quer dizer em Nessun Dorma – por mais que eu o quisesse.


Continuou olhando na espera que eu tivesse algo mais a dizer para poder rebater, quer dizer, dialogar. Me atrevi:


—Não quero isentar a indústria cultural da responsabilidade que tem sobre muitos males, mas ela não é resultado de empresários representados de modo maniqueísta como maquiavélicos inescrupulosos. Ninguém é obrigado a ver televisão, não há condução coercitiva de jovens para bailes funk. O sujeito, e aqui generalizo, é capaz de saber quando algo lhe faz mal, por mais que os seus padrões para isso sejam “descompensados” – mas nem por isso completamente desprezíveis. Fora que a democratização do acesso à cultura não é eficaz e igualitária no todo social. Imagine o senhor como é difícil levar um piano para o Complexo do Alemão, com sobe e desce de morro? É um assunto complexo, né, alemão?


Ele não achou graça. Pelo menos agora sei que trocadilhos não funcionam com os críticos.


Ignorando o vexame da piada infeliz, deu prosseguimento:


—Tu dás a entender que a mídia nivela todos a uma posição comum, de forma que todos recebam no mesmo patamar, por mais que alguns estejam em graus “mais elevados” de entendimento. É isso?


—Creio que sim.


—Isso justifica a ausência de originalidade da mídia? A quantidade de remakes, live

actions e regravações das mesmas músicas em seis versões diferentes interpretadas pelo mesmo “artista”? Veja, minha filha, se a indústria tem mesmo todo esse poder, como tu dizes ter, de espalhar cultura e educação para todos, por que cargas d’água ela não o faz decentemente?! Por que continuar dando o que já se sabe? O que nada acrescenta? Por que chamar de arte o que é a deturpação dela?


—Isso é comp...


—Eu te digo o porquê – interrompeu o homem, ligeiramente arrebatado pelo discurso, enquanto se levantava em direção à mesa de centro – Somos seres primitivamente afetivos. E não entenda que eu despreze a afeição de todo, não, de maneira nenhuma. Todavia, ela se manifesta em maioria irracional.


Tomou um gole de Jägermeister que estava sobre a mesa de centro e continuou enquanto voltava à mesa grande.


—Senão, qual seria o sentido de ouvir uma mesma música centenas de vezes se você não está se pondo a aprender tocá-la? Por que uma música de determinado filme pode provocar um efeito instantâneo sobre quem assistiu ao tal? Por que você, uma moça que se diz conhecedora de boa música e nuances interpretativas desta e de outros aspectos de produção humana, passa horas a fio arrebatada por personagens fictícios com começo, meio e fim determinados a te manter dominada por sentimentos que te afastam da tua própria realidade e te induzem a querer ter a existência deles, que é irreal?!


Hadassah, se fazendo desentendida:


—Gente, vocês querem açúcar para o café?


Respondi que não. Adorno, que não gosta de café. O tal me olhava esperando réplica. Bendita a hora que fui sair de casa!


—Concordo com o que disse da afetividade – respondi lentamente para processar a resposta – E também concordo que a busca pelo retorno financeiro iniciou o processo de desumanização da arte, como bem sei que assim pensas tu também a respeito do triunfo do pensamento instrumental, que aconteceu com a plena disseminação da lógica mercantil usando de linguagem publicitária na indústria cultural como forma de dominação... Mas, seria bom para a humanidade abrir mão de uma coisa tão poderosa porque existem coisas ruins nela? Eu sei que para o senhor só tem coisa ruim. O senhor me disse que não, mas, no fundo, eu sei que sim. Mas não é desse jeito. Quando assisto Do Bong Soon, eu tenho consciência de que é um dorama. É uma coisa idealizada e, para ser justa, repetitiva. Triângulo amoroso, cara rico, mina pobre, cenas com animações dignas de anime de segunda categoria, ciúme besta, casais agindo como adolescentes apaixonados, alguém que fica na friend zone, enfim, os clichês. Até as músicas são muito características. Eu vejo os padrões, mas não os aceito passivamente. Se a vida se resumisse a querer determinar sempre e drasticamente as mudanças da sociedade, não chegaríamos a lugar nenhum: essas mudanças criam novos paradigmas que alguém vai querer quebrar mais adiante.


Ele desistiu de mim.Depois do lanche, ele me deu um “Verabschiedung” e Hadassah me levou à porta.


—Obrigada por conversar com meu tio. O Max foi pra Alemanha e só volta mês que vem... Você precisa ver os dois “assistindo” televisão, parecem com os Statler e Waldorf – e deu um risinho despretensioso.


Nos despedimos.Dei uma volta no quarteirão e vi a janela do escritório de Adorno.


Ele voltou para os livros.


Cheguei em casa e terminei meu texto.


1 Comment


Unknown member
Dec 06, 2023

Muito bom!!!

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