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Curta revive uma angústia sem fim

A morte branca do feiticeiro negro faz experimentar a dor de um escravo suicida


Nathielly Lima

Como ter noção da intensidade da dor de escravos e escravas que saíam em sua maioria forçados e/ou roubados da África, enfrentavam dias no porão de navios nas condições mais insalubres possíveis para serem comercializados como meros objetos? A morte branca do feiticeiro negro (2020), curta-metragem disponível no Globoplay, consegue atingir com excelência uma amostra da intensidade da experiência dessas pessoas. O foco é a história de um negro escravizado da Bahia que cometeu suicídio em 1861, promovendo uma integração marcante entre trilha sonora, legendas e imagens.


O curta-metragem de 10 minutos retrata cenas do universo do trabalho escravo: fazendas, colheitas, homens brancos em sua posição hierárquica de superioridade, rostos negros com suas feições de cansaço e submissão. Estudamos sobre a escravidão no Brasil em nossas grades curriculares da escola. A história retrata os negros e negras vítimas do sistema do racismo e da escravidão e limitados ao seu contexto sociocultural, justificado, primeiro, pela religião cristã e, depois, por teorias de superioridade da “raça branca”, vestidas de ciência. Mas o filme revela um aspecto mais profundo e íntimo: uma carta suicida de um escravo psicológica e fisicamente desgastado.


A escravidão e o racismo que a estrutura atingia todas as camadas do ser humano, como podemos concluir a partir da carta suicida. O pesquisador brasileiro Clóvis Moura, no seu artigo O racismo como arma ideológica de dominação, o define como um “mecanismo de sujeição” do negro com relação ao branco. Essa sujeição é integral: física, psicológica e espiritual.



Uma trilha sonora intensa indica a aflição e a angústia retratadas nas cenas que remontam ao fim do século XIX e início do XX. O sentimento que a canção passa está totalmente sincronizado com o do escravo, autor da carta suicida. No início, temos um tom ainda aflito e, à medida que o filme evolui e fica escancarado que o escravo está tentando pela terceira vez o suicídio, a música ganha intensidade até um patamar de desespero e dor. O conceito de banzo não é colocado sem intenção: uma nostalgia mortal de negros africanos escravizados. É provável que esse foi o principal motivo do suicídio do escravo.


A distância de sua terra, dos seus costumes e a falta de qualquer perspectiva além da escravidão culminam em uma tristeza profunda que, sem canalização, resulta no suicídio. Podemos, através da música e das imagens, vivenciar as sensações que aquele escravo estava passando dentro do seu contexto de dor imensurável.


Dessa forma, juntas pela edição cinematográfica, as palavras da carta, a trilha sonora e as imagens constroem integralmente o sentido do curta: a angústia de ser um escravizado e sem nenhuma perspectiva além desta condição social. Em outras palavras, esses três elementos do filme estão amalgamados para criar essa sensação, como se ela estivesse sendo compartilhada com o próprio autor da carta.


O filme se torna urgente para refrescar a memória do Brasil, país construído e marcado pelo racismo estrutural, fruto direto de mais de 300 anos da escravização negra. As discussões calorosas sobre racismo na política e na sociedade, tanto nos Estados Unidos como por aqui foram reavivadas principalmente pelo assassinato do estadunidense negro, George Floyd, por asfixia promovida propositalmente por um policial branco, que acabou condenado na justiça. O movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) agitou as ruas das grandes metrópoles dos Estados Unidos, manifestando indignação pelo crime.


Para você quem tem o psicológico forte, assista sem medo. Mas o leitor(a) que sofre de depressão, recomendo evitar, pois pode gerar gatilhos, uma vez que A morte branca do feiticeiro negro cumpre plenamente o objetivo, exposto em sua sinopse: o de transpassar “paisagens etéreas e ruídos angustiantes” da escravidão.


Curta-metragem: A morte branca do feiticeiro negro

Direção: Rodrigo Ribeiro

Gênero: Filme-ensaio

Ano de lançamento: 2020

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