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Entre músicas e raízes

Artista e lavrador habitam o mesmo corpo


Monik Hevely

Artista segura sanfona sentado de frente. Ele é moreno sem barba.

Novo do Acordeon divide a paixão pela música com a lida no campo. (foto: Monik Hevely)


Na zona rural do pequeno município de Ribamar Fiquene, Maranhão, no povoado Tabatinga, vive Manoel Cruz. “Novo do Acordeon”, como prefere ser chamado, entre as obrigações do trabalho na lavoura, encontrou brechas para desenvolver uma paixão que já vem de outras gerações: a música.


O trabalhador da roça, que colhe a raiz e faz a típica farinha de puba, é o músico que compõe canções. As mãos, calejadas do duro trabalho no campo, são as mesmas que tocam a sanfona com maestria. A voz que anuncia seu produto na feira é aquela que entoa belas canções. Entre a farinha e a música, o nordestino Novo leva a vida.


Sua história musical já vem de parentela. “Meu avô era músico, meu pai, meus irmãos quase todos também são. Teve um que gravou dois CDs”, relembra, ao falar da família, com quem aprendeu a cantar e tocar. “Nunca tivemos aula teórica. Aprendemos ouvindo, na prática”.


Ainda que sempre estivesse envolvido com a música, Novo começou a cantar após a morte do seu pai, que ocorreu na década de 1990. “Depois que ele faleceu, comecei a tocar acordeon e violão”. Ao longo da vida compôs cerca de 20 músicas, mas não tem uma preferida, “todas são boas”.


Nenhuma delas está anotada em folhas ou cadernos, ficam guardadas na memória. “Fez, cabô. Não tem negócio de esquecer, não”. Seu gênero musical é o forró pé de serra. As canções são inspiradas pela vida no campo e romances, embora esteja devendo uma para a sua esposa Jovelina Costa, com quem é casado há 24 anos e teve dois filhos, Adriano e Josivânia Costa.


Ele canta nas proximidades de Tabatinga, no entanto, teve que dar uma pausa por conta do isolamento social no auge da Covid-19. “Mas, eu sempre toco”, garante, após voltar às atividades. Novo do Acordeon, como é conhecido pelo povo da cidade, não possui uma banda.


Quando é chamado para um show em alguma ocasião, ele convida os irmãos, primos e conhecidos para ajudá-lo na “tocada”. Eles tocam a zabumba, o pandeiro e o triângulo, que juntos compõem o pé de serra, mas às vezes também o violão e a bateria.


Quando animaram o aniversário de sua vizinha, foi questionado se ele e o grupo treinavam diariamente, mas negou. “Rapaz, nós passamos dois meses sem tocar, e não tem erro. Dá certo”, comenta, ao descrever a sintonia dos integrantes e a qualidade do show. Quando recebem o pagamento pelas apresentações em aniversários e outras ocasiões, costumam dividir o dinheiro. E, apesar de não viver da música, alega que, se alguém chamar... “Bora lá. Tenho os instrumentos todos”.


Ele toca com frequência na igreja católica de Ribamar Fiquene desde 1999. Suas noites de domingo são destinadas a acompanhar os cantos da missa com o toque do seu violão, mas não recebe pagamento para fazer isso, ele faz de coração.


Novo é bastante ativo no catolicismo, além da missa, participa do ministério de música Servidores do Rei e do coral Voz de Anjo, “das meninas”, além de ser o vice-presidente do terço dos homens. E só não é mais participativo porque mora longe da cidade.


Ele pensou em desistir da música em 2013, quando seu filho, Adriano, faleceu aos 16 anos. “Eu pensei que não queria mais tocar, mas a gente tem que continuar. Passei foi tempo sem pegar na sanfona”, lamenta, com uma expressão triste, ao lembrar do primogênito. Novo pergunta: “Viram a cruz perto daqui de casa? Foi lá onde ele faleceu”.


Tempos após a perda, voltou a cantar, mas acha que não conseguiria viver só da música. “Talvez se tivesse começado mais cedo, eu tinha chegado lá”. Mas, o tempo se encarregou e apareceram outras prioridades em sua vida, fazendo com que deixasse a música um pouco de lado junto ao seu sonho de gravar canções. “Minha paixão era a música”, alega. Ele menciona que antes tinha muita vontade de registrar um CD, mas hoje nem tanto. “A idade chegou, mas para a música, nunca é tarde”. Entretanto, surgindo a oportunidade, diz que “gravaria na hora”.


A casa de farinha


Novo nasceu em Tabatinga e lá vive nos dias atuais. Hoje, com 53 anos, se recorda da infância modesta na roça, ao lado dos pais e 10 irmãos. “Íamos para a escola, que ficava a cerca de quatro quilômetros daqui a pé. Na época, ainda não tinha estrada, só uma veredinha”. A “boroca” era um saco de açúcar, onde colocava um simples caderno de capa “molinha” e um lápis. Quando chegavam da escola, lá para o meio-dia, seguia para a lida na roça com seu pai. “Naquele tempo, criança podia trabalhar”. Esses obstáculos fizeram com que Novo desistisse de estudar quando estava no quarto ano do ensino fundamental.


Quando a idade mais avançada chegou, deixou o sertão de lado e foi trabalhar no garimpo. Mas não teve sucesso, embora usufruísse do tempo livre para tocar violão nos bares e banhos. “Lá eu não consegui nada de futuro não, nenhum bem. O que a gente ganhava, lá mesmo ficava”. E, depois de cinco anos, decidiu retornar às origens. Voltou para a roça e não saiu mais.



Artista segura sanfona sentado de frente. Ele é moreno sem barba.

Manoel Cruz não registra as suas composições em cadernos. "Fez, cabô" (foto: Monik Hevely)


Por mais que seja um cantor, Novo se dedica à agricultura. “Eu vivo e dependo da roça”. Planta arroz, feijão, fava e mandioca, a raiz é de onde vem sua principal fonte de renda, a farinha de puba. “Minha família sempre mexeu com a farinha, mas naquele tempo era mais devagar, era mais para o consumo”. Hoje, além de plantar, ele compra a mandioca para fazer a farinha e, embora viva da atividade, há períodos em que a venda é difícil.


Manoel possui uma casa de farinha em sua terra, onde, quase todas as segundas-feiras, convoca homens e mulheres da região para auxiliá-lo na produção. “É muito bom, porque reunimos a comunidade todinha nesse dia”. Com os afazeres da vida na roça, o contato entre vizinhos se torna raro. Para ele, a sorte do povoado é a sua casa de farinha, visto que só assim “colocam os papos em dia”.


O lavrador e compositor vende seus produtos na feira da cidade, realizada aos domingos. Quem visitar sua barraca, pode consumir a típica farinha de puba, adorada pelo povo do Nordeste. Antes da pandemia da Covid-19, também era possível apreciar a música feita com inspiração nos alimentos comercializados e na cultura dos povoados que a integram. A sua voz, junto à sanfona, dava vida a uma ótima propaganda que chamava bastante atenção dos clientes. Com o isolamento social, a princípio Novo do Acordeon deixou de comparecer. Agora, voltou a comercializar a farinha no local, mas sua música e carisma fazem falta.


O cantor, a pedido dos moradores do povoado, candidatou-se a vereador na cidade. A intenção era que a comunidade tivesse alguém que a representasse. “Me apontaram. A comunidade que escolheu”. Não deixando a arte musical de lado, foi ele mesmo quem compôs a música para a campanha eleitoral, mas acabou não conseguindo uma vaga na Câmara Municipal.


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