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Lília Diniz, filha das raízes do babaçu

Escritora lembra da infância e de outras inspirações para sua obra


Fabiana Viana


“Eu nasci por pura pressa de ver o mundo”, conta Maria Lília Silva Diniz, de 51 anos, natural do Maranhão, conhecida por ser escritora, atriz, cantora e brincante. Lília viveu até seus sete anos de idade em Alto Alegre, no interior do Maranhão, povoado que não existe mais, pois voltou a ser uma reserva indígena. “Eu vivenciei toda essa magia, toda essa coisa que está na cabeça do adulto, que é o imaginário da infância feliz. Tudo que a gente vive ali, é encantamento”, define.


O nascimento da artista aconteceu em uma visita à casa de sua avó, quando a mãe de Lília, Alice da Silva, começou a sentir contrações. Chamaram a parteira, e ali, na cama de sua avó, nasceu a multiartista. Depois deste acontecimento inesperado, dona Alice retornou para Alto Alegre, na região de Barra do Corda, que era o povoado onde ela vivia, com o seu esposo, José Ferreira Diniz e outros filhos já nascidos.


Nesse período, entre 1972 e 1979, não havia energia elétrica na região, nem as tecnologias atuais. Lília cresceu tendo um contato absoluto com a natureza e observando tudo ao seu redor. As brincadeiras eram o que existia para entreter as crianças. “Os adultos brincavam de roda com as crianças. Os pais, as mães estavam lá. Os adultos brincando de queimada, brincando da barra. Porque não tinha energia elétrica. Então a gente tinha outras formas de se divertir”.


A comunidade que essa família vivia era distante e tinha suas dificuldades, uma delas era a chegada de livros para alfabetizar as pessoas. As leituras de folhetos de cordel acabaram sendo o modo da futura escritora se alfabetizar, tanto nas letras, como na vida artística. Ela não só lia como decorava os cordéis e, à noite, declamava nas brincadeiras de roda, divertindo crianças e adultos.


O rádio foi o único meio de comunicação que fez parte da infância de Lília. Era por ele que ela ouvia histórias dos irmãos Grimm, que abordam memórias populares, antigas narrativas, lendas ou sagas germânicas. O rádio foi o meio de comunicação que também fez parte dessa construção na vida da artista.


Nova morada


Depois que as terras onde aquela comunidade vivia foram devolvidas para os indígenas, cada colono seguiu um caminho diferente. A família de Lília migrou para Imperatriz, em um período complicado de adaptação. “ A gente veio parar na periferia. E para nós foi bem difícil. Porque lá a gente vivia numa fartura. Plantava, colhia, alimentos saudáveis. E tinha sempre, nunca faltava. E aí você imagina, chegar em um bairro que estava iniciando, meu pai e minha mãe analfabetos, com oito filhos, não foi fácil”, relata a poeta.


Santa Rita era um bairro periférico que estava se iniciando, com todos os problemas que se possa imaginar, além do fato do Brasil também estar vivendo um momento delicado. “A gente estava na ressaca da ditadura. Então os movimentos sociais estavam explodindo, a gente correndo para a rua para pedir água. E eu digo a gente, porque eu estava lá com oito, dez anos de idade já participando das passeatas”, lembra Lília.


Um período no qual a violência era incontrolável, com muitas brigas e mortes. As escolas eram precárias e faltava energia elétrica e água encanada nos bairros. Na época das chuvas, a lama tomava de conta das ruas, e, no verão, era muito lixo e poeira por toda parte. A produção de arroz era significativa no Maranhão no início dos anos 1980 e as cascas eram jogadas no meio das ruas como forma de amenizar a lamaceira.


Por estar inserida nesse cenário caótico, Lília passou a formar suas próprias opiniões e, naquelas circunstâncias, foi se constituindo um ser político, que passou a lutar pelos seus direitos de cidadã. “Na Associação de Moradores, que foi criada na época, eu fui eleita para representar as crianças. Então tinha uma participação muito grande da juventude, das crianças nos movimentos”.

Lília teve uma grande mentora, chamada Lucília, que era uma referência importante nas lutas pelos direitos humanos. Acompanhando dona Lucília, Lília foi desenvolvendo um olhar mais sensível para essas questões, e passou a se envolver diretamente nas reivindicações.


Lília Diniz, posando com seu livro Miolo de pote da cacimba de beber (foto: Fabiana Viana)


Renascimento como escritora


Na adolescência, Lília já escrevia peças de teatro para a igreja e escolas. Desde aquela época, foi se constituindo uma escritora com o olhar voltado para a necessidade de mostrar que é uma mulher da periferia, filha de trabalhador rural, que se constitui nas lutas. Tudo isso influencia no tema de sua literatura, voltada para manter as tradições da terra e a cultura, por exemplo, das quebradeiras de coco babaçu e dos povos menos favorecidos.


Com o tempo, a sua vivência artística enveredou pelo campo do teatro popular, de rua e de bonecos. Quando foi morar em Brasília, para cursar a universidade, conheceu grandes repentistas e violeiros, que trabalhavam diretamente com a linguagem de cordel. Apesar de ter tido um contato muito forte com essa cultura popular e facilidade com a rima, Lília acredita que desenvolve uma escrita muito tímida para esse gênero.


Obras publicadas


Lília é licenciada em Educação Artística/Teatro pela Universidade de Brasília (UnB) e pós-graduada em gestão cultural e hoje já tem seis obras publicadas. Babaçu, cedro e outras poéticas em tramas, de 2002, foi o primeiro livro de poesia da escritora, com uma tiragem de dois mil exemplares. Ilustrado pela artista plástica Núbia, contou com ampla divulgação em escolas públicas do Distrito Federal, saraus e eventos de educação, em diversos estados brasileiros. “É um livro misto. Os poemas não estão tão amarradinhos como o Miolo de pote ou o Sertanejares. É um pouco de cada, vamos dizer assim. E também é o primeiro livro. E que terminou sendo a porta de entrada para mim nesse universo, nesse circuito de poetas também nacional e abriu muitas portas”, considera.


Miolo de pote da cacimba de beber, obra lançada em 2003, quando ainda residia no Distrito Federal, também chamou a atenção por ter sido editado como “livro objeto”, pelo design rústico, versatilidade nas performances e por incorporar elementos do cancioneiro e da poesia popular. “O livro vem em uma caixa de buriti, esteticamente mais bonito”, afirma a poeta, que considera sua proposta mais estética.



Livro Miolo de pote por cima de cocos babaçu: trabalho de Lília tem marca estética. (foto: Julio Costa)


Sertanejares, uma continuidade do Miolo de Pote, é feito em formato de abano triangular, artesanato proveniente da palha da palmeira de babaçu. Entremeado de quatro páginas de tecido de chita e amarrado com fios de sisal, foi finalista na 10ª Bienal Brasileira de Design Gráfico. “Sertanejares já é uma proposta que traz mais a presença do feminino. Então ele também tem esse conceito mais amarrado, e

esteticamente falando, que o pessoal categoriza como livro-objeto, livro-arte”


Ela menciona um pequeno conto, “Ao que vai chegar”, lançado em 2008, que retrata a história de uma menina que mora em um lugar sem luz. “Tudo que se vê é cinza, não tem cores, além do cinza. Lembra um pouco a metáfora da caverna de Platão. E lembrando que quando eu escrevia, eu nunca tinha lido sobre esse mito”


A obra seguinte, O mundo de Mundim, a princípio era para ser apenas uma performance sobre o universo da leitura. Mas Lília com seu olhar diversificado, resolveu ampliar a proposta. “Alguém me pediu para fazer uma performance sobre a importância da leitura e eu fiquei inquieta com isso. E eu me perguntei, o que eu tenho para dizer para esse pessoal, que esse pessoal já não sabe a respeito da importância do livro?”.



Lília decidiu criar o personagem Mundim para provocar uma reflexão profunda sobre o direito das crianças. “Não ter um livro, não ter escola, questão do trabalho escravo. Ele também é um menino que tem uma deficiência, porque perdeu o braço no corte de cana. E de fato foi um livro que contribuiu muito para mim, enquanto ser humano, e também para a minha jornada, nesse universo da literatura e dos direitos humanos.”


Mula sem Cabeça, a princípio, era um conto inserido em Sertanejares que Lília classificava como um tanto despretensioso. Releitura da lenda sobre a punição das mulheres que se envolvem com padres celibatários, traz a história de uma mulher que se apaixona pelo padre, é correspondida, e eles têm um caso. Quando descobertos, apenas a mulher é punida, condenada à decapitação, e, no lugar de sua cabeça, surge uma labareda de fogo. “Tudo que a gente faz, está ali pensando em como está despertando alguma reflexão”.


Lília relata que no lançamento de Sertanejares, quando foi ler esse conto, recebeu um alerta de um amigo querido, Jô Oliveira, ilustrador de literatura infantil, com a pegada da xilogravura: “Ele disse: ‘Lilinha, esse negócio tem que sair desse livro. Isso é uma história independente. Isso é um cordel’. E, aí, ele falou: ‘Eu ilustro para você. E, aí, pronto. Aproveitei a oportunidade e publiquei”.


Nos dias atuais, Lília tem uma vida ativa nos movimentos de cultura. Ela é artista e presidente da Associação Cultural Casa das Artes em Imperatriz. Apresento aos caros leitores um poema feito pela talentosa Lília Diniz, chamado "Liça muié" .


Liça muié


me rio

me lua

me pote

me jacá

me poço me mato

me pilão me barro

me azeite me açude

me abane me esteira

me cabaça me quibane me cacimba

me vagalume me lamparina

me poetiso

em ti


Lília, minutos antes de começar sua apresentação no palco. (foto: Junior Schubert)

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