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“O artista é uma peça fundamental em qualquer lugar”

Tonneves, mestre das artes visuais do Maranhão, conta sua trajetória de sucesso


Marcelo Neres

Henrique César Barbosa


“Minha vida já foi forjada para que eu me tornasse o artista que sou hoje”, acredita o artista plástico e pintor José Antônio Neves da Silva, o Tonneves. Descendente de uma família de origens portuguesa, espanhola e árabe, ele valoriza cada etapa de sua formação, entre rejeições e sucessos, como aprendizados essenciais para os seus 47 anos de carreira.

Pintor na exposição Lágrimas Verdes: trabalho de 2023 é um alerta ambiental. (foto: divulgação)


Em entrevista coletiva para estudantes de jornalismo da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), em Imperatriz, ele detalhou suas influências, que vão das naturezas mortas de Caravaggio (1571-1610) e o impressionismo de Claude Monet (1840-1926), ao hiper-realismo. Relatou os percalços do início de sua jornada no meio artístico, ressaltando quem o incentivou, além de comentar seus projetos já lançados, como a recente exposição Lágrimas verdes e a produção futura, Os retalhos do Maranhão, na qual pretende retratar o lado profundo e humanizado dos rincões do estado.


Por volta dos 7 anos de idade, Tonneves teve a sua primeira experiência no meio artístico ao participar de um concurso de pintura com o objetivo de ganhar como prêmio uma bicicleta. Mas algo aconteceu, como pode ser conferido na entrevista, que transformou sua trajetória. “Eu saí do lixo pro sucesso, para vida. Eu me transformei no artista que sou porque me adubaram antes”, comentou. Aos 12 anos, participou de uma coletiva de arte pela escola e ficou em primeiro lugar, percebendo que poderia usar seus dons para se expressar em pinturas. Hoje, Tonneves tem suas obras espalhadas por vários países do mundo, fabrica facas, dá aula de artes marciais e está apaixonado pelo seu trabalho como professor de artes no Centro Cultural Tatajuba, onde visualiza a perspectiva de novos artistas talentosos em Imperatriz. “Eu aprendi mais com os meus alunos do que de fato eu ensinei para eles”. Bem-vindes ao universo de histórias e vivências de Tonneves.


Zine Sibita - Como você descobriu a aptidão para a pintura?

Tonneves - A pergunta sempre sai e a resposta é a mesma: eu não me lembro quando eu comecei a querer ser um artista ou brincar de arte. Eu era uma criança do interior e, quando me dava conta, estava brincando com argila. Boi, cavalo, tudo que imaginava ter em uma fazenda eu ia fazendo em pequenas esculturas, miniaturas, e montava minha fazendinha. Na minha infância, as brincadeiras eram essas: riscar o chão, desenhar nas paredes da casa, enfim, catar algumas sementes de urucum e sair brincando nas roupas que estavam no varal. Depois, também, o castigo chegava e a mãe tava pra desmanchar o chinelo nas costas do menino... e ali foi o envolvimento. Já aos 12 anos participei de uma coletiva da escola, alcancei o primeiro lugar. Para mim, a arte era alguma coisa bem maior, eu não entendia o tanto que poderia ser. Mas a minha vida foi forjada pela situação natural para que eu fosse o artista que sou hoje. Eu sempre costumo dizer: eu acho que a mãe, quando estava grávida, já era um artista no útero, só saí para externar e continuar. Então arte pra mim é tudo, é vida. Não me lembro exatamente quando eu falei assim: “Vou ser um artista”. Mas eu sou feliz por ser um artista, isso me deu uma vida bem legal.


Z.S. - No início da sua trajetória, quem foram as suas inspirações para ser o artista que você é hoje?

Tn. - A primeira vez que vi alguma coisa estampada como arte ou um retrato de arte, foi uma natureza morta do [pintor italiano] Caravaggio. Eu não sabia diferenciar entre a figura da fotografia da época ou uma pintura, não sabia que existiam as duas coisas, era muito criança. Quando alguém me falou que aquilo era pintado, era feito com tinta, eu fiquei encantado. Então foi tão grande a admiração e o choque emocional, que nunca mais esqueci aquela cena. Eu me lembro que era um Natal, alguém tinha um livro de uma escola, me mostrou aquela figura e eu fiquei impressionado. Dali eu resolvi que um dia pintaria também, só não sabia quando. Em 1974, conheci pela primeira vez a tinta a óleo, não sabia que existia tinta a óleo, só conhecia a tinta guache, lápis de cor e alguma coisinha. Eu tinha um amigo indígena e ele fazia tinta de jenipapo, tingia tudo. Aquela tinta tem um poder de adesão muito grande, e eu às vezes pedia um pouquinho e tentava fazer minha natureza morta, mas não dava certo, eu não tinha técnica.


Quando eu conheci a tinta a óleo, conheci a grandiosidade que é a arte.


Então Caravaggio, pra mim, foi sempre aquele ponto inicial. Eu tive sorte que o cara é um dos maiores pintores da história da humanidade, o que mais trabalhou sombra e luz. E é o que eu mais faço da minha vida, eu amo a sombra e a luz, não tem como explicar isso. [O pintor italiano] Leonardo da Vinci é uma pessoa que não pode faltar na referência de um artista que gosta de descobrir e brincar com as descobertas e as novidades. Mas depois de buscar e pesquisar muito, eu descobri que o meu artista preferido é [o pintor francês Claude] Monet, é o cara das cores. Hoje eu sou um seguidor de Monet, fiel mesmo em tudo. Só que não pinto igual Monet, eu copio de Monet tudo que a natureza oferece de relacionado a cores. E eu gosto de pintar o realismo. É meio complicado de falar da figura inspiradora e do cara que está sendo inspirado por ele. Hoje eu sou um Monet que pinta hiper-realismo. Tô indo alto, né, me comparando com o gênio da pintura. Eu pesquiso muito, eu amo pesquisar. Primeiro eu queria ser... mexer com escavação, essas coisas todas aí, não deu certo. Eu queria ser arqueólogo, não deu certo. Virei pintor. De arqueologia para pintura é bem perto. Então sempre eu faço isso: eu procuro um sentido pra coisa e depois eu começo a pesquisar.


Tonneves é fascinado pelas cores de Monet, mas não abre mão do realismo. (foto: divulgação).


Z.S.- Quais foram os seus maiores incentivadores no início da sua carreira? E como isso impactou na sua vida, seja de forma positiva ou negativa?

Tn.- Na verdade a minha mãe, dona Severina Neves, veio de uma família portuguesa e tinha uma tia-avó que era artista plástica, formada na Academia de Belas Artes de Coimbra. Migraram para cá, vieram para Alagoas e depois mudaram-se para Paraíba. Naquela época, essa tia-avó, essa parenta distante, fazia muitas obras bonitas e ela também trabalhava molduras. Eu não sabia que tinha essa raiz, com o tempo minha mãe começou a me explicar sobre a família Neves, e falou da Rita Neves, que era uma pintora que veio para o Brasil, não se adaptou bem, voltou de novo para Portugal e por lá ficou. Eu herdei no DNA essa questão da arte, e minha mãe sempre me motivou. Meu pai não dava muita atenção. Quando viemos para Imperatriz não tinha nada sobre pintura, até que um dia uma pessoa me falou: “Vai na Livraria de Fátima, fala com o padre, e lá tu vais encontrar alguma coisa”. Chegando lá, conversei com o padre e ele falou: “Rapaz, o frei fulano deixou aqui umas tintas e uns pincéis, está ali jogado, vocês querem para vocês? Pode levar”. Eu e meu amigo fomos lá no depósito empoeirado, estava horrível aquilo, tinha caixas de tinta, pincéis, tela... tudo jogado, e ele deu para nós. E a gente não tinha como levar aquilo tudo, sem nenhum centavo no bolso.


Chamamos um carroceiro que encheu uma carroça de tinta e pincéis e levamos, daí começamos uma carreira.


Mas eu lembro muito que às vezes eu estava parado, sem material para pintar e minha mãe chegava e perguntava por que eu não estava pintando. Eu falava: “ sem grana”. Ela dava uma volta por ali e chegava, botava a mão no bolso, tirava um dinheirinho e dizia: “Vai lá e compra, não para de pintar não, isso é importante para ti”. Então, dali uns quatro anos depois, mandei minha primeira obra para o Japão, já comecei a internacionalizar o trabalho. E eu até falava: “Esse camarada comprou porque é puxa-saco, gosta de ajudar”. Mas não era, é porque eu já começava a pintar as coisas da região. Apareceu esse camarada que era um colecionador, comprou essa obra e eu comecei a perceber o tamanho do mundo que eu estava entrando. E minha mãe sempre ali, fora dela não me lembro de outra pessoa ter me incentivado tanto. Depois, com o tempo, a gente vai ganhando admiradores, seguidores, amigos, enfim, e todo mundo vai começando a ajudar. Mas nesse princípio, no ponto crítico da história, foi a mãe. Ela que foi minha parceira.


Z.S. - O seu pai era de origem árabe e a sua mãe montou uma biblioteca com literatura chinesa. Fale mais dessa formação e relações.

Tn. - A minha brincadeira da infância, e da vida toda, era ler e estudar filosofia chinesa. Eu nunca tive um carrinho, um brinquedinho, eu nunca saí pra brincar com uma turma e jogar uma bola. Era numa biblioteca que a minha mãe montou para mim, e eu queria estudar tudo que pudesse da filosofia chinesa. Fiquei assim impressionado com aquilo. Então estudo, estudo, estudo. Meu pai era lavrador, gostava da roça, e eu ia trabalhar com ele. “Ó, tu tem que estudar”. E eu falava: “Não, pai, agora vou aprender com o senhor”. Fazia cerca, ajudava no roçado e tudo, a minha vida foi sempre isso. Então eu sou uma pessoa muito rica como ser humano, mas não é rico para oferecer, é rico porque ganhei muito, eu recebi muita informação boa. A minha mãe vem da família Neves Veracundo, que tem origem espanhola e de Portugal. Meu pai vem da família Pegado, que vem dos morros antigos da costa da Espanha, migraram pra cá e fizeram a morada no Rio Grande do Norte. Então tinha uma divergência religiosa, minha mãe cristã e meu pai meio que mulçumano. Eu fui criado dentro de um lar assim, cheio de laços e divisões culturais. Meu pai gostava de tudo que era carne seca, farinha, tripa, essas coisas tudo, e era bem grosseirão. A minha mãe era bem refinada. Meu pai não dava muita bola assim para a arte. Ele me apoiava nas artes marciais, aí era meu fã. Morreu aos 93 anos, um cidadão bacana, gente boa. Minha mãe morreu mais cedo um pouquinho, e eu herdei deles essas nuances todas da cultura, da arte. A única vez que eu vi meu pai feliz com a minha pintura foi quando eu pintei um retrato dele. Ele já de cadeira de rodas, não andava mais. Eu falei: “Pai, eu quero te mostrar um negócio feio demais”. Ele falou: “O que foi?” Eu falei: “Venha cá”. Levei e tirei o pano de cima da tela. Ele olhou: “Meu Deus, rapaz, tu fez uma cara feia dessa?” “Fiz, tá aqui pai”. Ele abaixou o olhar e a lágrima começou a escorrer. Eu falei:


“Isso aqui, pai, a gente pinta aquilo que a gente sente. Pintura é profissão de cego, não se pinta o que vê, mas o que sente, o senhor tá entendendo?”


Ele disse: “Tô”. Eu falei: “O senhor é a pessoa mais importante para mim, é o senhor que deu origem a tudo isso, eu sou um pedacinho seu. Só que eu sou um pedaço seu artista, e eu quero te homenagear aqui nessa obra hoje”. Aí ele me puxou e deu um abraço, cara, que eu não vou esquecer aquilo nunca mais na vida, aquela lágrima quente e aquele abraço. Naquele dia eu percebi que ele valorizou o artista que eu tinha me tornado, mas por causa da tela dele. A tela até hoje está em casa ainda, eu não vendo e não tem negócio, aquela tela é emoção pura na minha vida. Então isso que eu digo para vocês: não tem como desligar o artista da pessoa, não tem.


Profunda relação com as questões da natureza marca a obra do artista. (foto: divulgação)


Z.S - Essa história de que jogaram a sua primeira tela no lixo, aconteceu mesmo?

Tn. - Quando eu tinha uns sete para oito anos, eu participei de um concurso de pintura, queria um prémio que era uma bicicleta monareta, era o meu sonho. Aí eu comprei três cartolinas e tinta guache, pintei umas telas, o melhor que eu fiz. Para mim era o top dos tops, já tinha até o lugar de botar a bicicleta em casa, tinha tudo. E chegou o dia da exposição. Aí tomei banho, roupa limpinha, tudo certinho, cabelo penteado, o perfume tava de matar, todo cheiroso. Quando eu chego lá, eu procurei minhas obras em todos os lugares e não achei. Nos corredores tinha quadro de tudo que era jeito, menos os meus. E eu perguntava pra um, pra outro, e ninguém falava nem nada. E uma mulher me olhou: “Menino, sai daqui, tu é de qual colégio?” Eu falei pra ela a escola, ela falou: “Não sei não. Pergunta para aquele rapaz, que é o vigia lá”, já meio estressada, né? E eu fui lá, perguntei, e o vigia falou assim: “Tu trouxe teus trabalhos pra cá? Pois tu vais nesse corredor aqui, lá no final. Quando tu dobrar assim, tem um tambor de lixo. Os trabalhos que não prestam tá tudo lá”. E eu falei: “Tá bom”. Mas eu não queria que os meus tivessem lá. Ah, mas eu tive sorte. Os primeiros que estavam em cima eram os meus. Eu fui tirando aquilo e aquela angústia me tomou. Sentei em um local, comecei a chorar com aquele negócio, com vontade de rasgar, e eu ouvi uma voz de alguém. “Ei, rapaz, tá chorando por quê?” Eu dei uma olhada e era um cidadão bem trajado, paletó e tudo, bigodão. Eu contei a história pra ele, ele falou: “Não, mas não pode, jogou seu trabalho”. “É, meu trabalho e um monte de trabalhos que tá ali e tudo”, desabafei com ele. E ele começou a olhar pra mim. “Por que você queria participar tanto assim?” Eu contei que eu queria a bicicleta, porque eu queria a monareta e tal. E ele ficou me olhando e falou: “Não, mas você não vai desistir. Um dia você vai ser o melhor pintor”. Mas que nada, eu queria saber da bicicleta. Chegou uma senhora, esposa dele, e ele falou: “Olha, meu bem, o que fizeram com esse menino”. Ela chamou ele, conversou alguma coisa baixinho, e ele falou: “Vem cá, vem cá, me mostra teus trabalhos”. Aí eu mostrei os trabalhos. Ele falou: “Nossa, mas uns trabalhos tão bonitos desse jogado no lixo”, e tudo, me consolando. Ela saiu, e quando ela voltou disse: “Quanto é a monareta?” Eu falei pra ela, eu me lembro mais ou menos, 350 cruzeiros, era uma grana alta, bicicletinha top mesmo assim. Ela disse: “Esse aqui é o dinheiro da sua bicicleta. As obras são nossas, nós estamos comprando as suas obras, pra você comprar a sua bicicleta”. Ah, não. Aí o mundo desabou de novo na emoção, e ele me abraçou e tudo. Eu já estava tranquilo, já não queria mais nem saber de concurso, e ele falou: “Olha, vamos fazer um negócio. Eu vou deixar você em casa, eu vou acompanhar a sua carreira, se você ficar aqui, e eu vou ser seu cliente, pode ser?” Eu fiquei muito feliz, mas eu não sabia nem do que ele estava falando. Eu não comprei bicicleta porque pegaram minha grana e fizeram foi uma feira. Eu também não liguei muito. Se passaram os anos, um belo dia encontrei aquele cidadão, e eu estava em uma exposição. Ele chegou, me olhou, eu olhei para ele e sorri. Eu conhecia, mas não lembrava, tinha aquela imagem na cabeça. Ele falou: “Rapaz, eu comprei as tuas primeiras obras, tu tava no lixo cara, tu lembras?” Aquele jeitão simples dele falar. E eu abracei ele, sabe? E aquilo foi um encontro incrível aquele dia. Depois ele me levou na casa dele e mostrou quadros que eu nem lembrava mais. Eu participava de exposiçõezinhas pequenas, vendia as obras, mas não tinha a mínima ideia de quem comprava. E ele comprou todas elas e tem uma pinacoteca particular. Todas as minhas primeiras obras ele tem, todas. E aí, naquela época. ele me encomendou o retrato da Juliana, que era a filha dele, ia completar 15 anos. Foi o meu primeiro grande trabalho, assim, de encomenda.


Então eu saí do lixo pro sucesso na vida. Eu me transformei o artista que eu sou hoje, aqui, porque me adubaram antes.


Eu tive que crescer, né? Essa história é uma história que me fez vencer. Essa pessoa é muito importante na minha vida, e acho que até hoje ele está por aí. Ele é o doutor Jeferson Alves, ele era chefe da Inteligência Militar do Norte e Nordeste, era uma pessoa muito cheia de cultura. Ele me deu uma força que ele nem sabe.


Z.S.- Como você descreve o seu estilo artístico?

Tn. - Eu não me defino como um estilo, sou eclético, sou uma pessoa que pinta um pouco de tudo porque não gosto de me definir. Acho que é muita responsabilidade e às vezes uma judiação seguir um ritmo só, só um estilo. Nós temos muitas escolas interessantes, desde o rupestre, da forma de pintar na caverna, até chegar no pós-impressionismo, e as fusões que chegamos agora, não dá para a gente escolher um. Mas eu tenho um toque de cada coisa, eu sou uma saladinha, sou uma multimistura das escolas.


Tonneves aprecia a experimentação de vários estilos artísticos em sua obra. (fotos: divulgação)


Z.S. - Como é pintar variados assuntos e se expressar nessa arte?

Tn. - Olha, eu acredito que seja o ponto mais difícil, porque pintar, dançar, cantar, construir alguma coisa, ser um ator, é preciso você ter um perfil, uma linguagem própria. Você precisa seguir uma linha para não se perder, e eu não consigo, pela diversificação oferecida pela própria natureza, pela beleza em si de todas as coisas que acontecem em volta da gente e estão existindo. Então às vezes eu fico com muita vontade de pintar um floral e eu pinto floral. Às vezes eu olho para uma pessoa ou uma figura humana e me dá a mesma vontade de pintar, eu acho interessante, eu vejo a beleza daquela figura, vou lá e faço. A natureza morta da mesma forma. A natureza, de uma forma geral, é o que eu falo sempre para as pessoas: se você tirar uma pétala de uma flor não é a mesma coisa que você ter a flor inteira, só o cheiro também não vai adiantar. Deixe ela quieta e aprecie ela no conjunto todo, desde o caule até os espinhos, enfim, não toque nela, deixe ela, ela só é flor porque ela tá lá, ela só é linda e te encantou porque ela tá lá. Se você tirar você mata tudo, você acaba com tudo. Eu não posso fragmentar a natureza só pelo prazer de pintar. Eu pinto um índio, uma floresta, um riacho, uma pedrinha, uma florzinha, um grilo... enfim, eu saio catando essas riquezas para formar um tesouro.


Quando eu não pintar mais, quando eu morrer, porque eu só vou deixar de pintar quando eu morrer, eu vou deixar uma obra completa. Eu pintei um pouco de tudo, e não ficou faltando quase nada, talvez um autorretrato.


Z.S. - Qual foi um dos seus maiores ensinamentos que você adquiriu com a arte?

Tn. - Eu vou contar uma história. Eu tinha um amigo chamado Abraão Junior, morava perto, foi o cara que me deu os primeiros tubos de tinta a óleo. A mãe dele fazia curso de pintura em Goiânia, vieram embora pra cá, a Dona Iracema. E ele falou: “Ton eu tenho lá umas tintas e eu vou te dar”. E me deu espátula, tintas... quando eu olhei pra aquilo... “Meu Deus, como é que eu faço, Junior?” E ele me acompanhava sempre. Eu comecei a pintar, pintei uma tela de 1,80 metro. “Tá bom ou não?” Aí o Junior traz um amigo dele para olhar a obra para comprar. Eu todo já feliz, fazendo planos com a grana. Chegou o amigo, olhou e tal, conversa pra lá, e o cara olhava a tela e olhava pro Junior. Chamou ele para um canto e falou alguma coisa. Ele falou pra mim: “Tonneves, tu sabes plantar arroz?” Eu dei uma olhada pra ele, assim: “Sei”. “Pois vai pra roça bicho, porque pintura... tu és o pior pintor que eu já vi na minha vida, cara. Junior me chamou para ver uma porcaria dessa”. Rapaz, ele falou um palavrão e foi embora. Eu falei: “Êpa, venha cá, moço”. Ele veio: “Que foi, rapaz, vai me bater agora?” “Não, vou fazer um trato com o senhor aqui. O senhor pensa que entra na minha casa, vem no meu ateliêzinho humilde e fala tudo isso sem ouvir nada? Não senhor”. Eu tinha 17 anos e falei: “Um dia o senhor vai comprar uma tela minha, e o senhor vai comprar caro, porque eu não vou desistir. Porque eu já sou da roça, vivo na roça e trabalho junto com meu pai. Não preciso deixar minha pintura para plantar feijão, porque eu já sei fazer tudo isso”. Aí eu sorri. Ele me deu um olhar: “Tu tá debochando da minha cara, bicho?” E saiu zangado e foi embora. Passou, passou, eu estava todo tranquilo, curtindo a minha premiação do primeiro lugar no meu primeiro salão de arte, com a tela “Nu Dormindo”. Era uma tela comprida de 2 metros por 1,46m, uma mulher seminua deitada na beira de um lago, de um igarapé amazônico com todas as grandes arvores, troncos, raízes, tudo que vocês possam imaginar de uma cena amazônica. Apareceu uma belíssima senhora no salão e falou assim: “Eu quero comprar essa tela, dessa forma”. Ela e a moça que anotava as vendas foram mais no reservado e acertaram os preços, a documentação que tinha que ser feita. Ela falou: “Quero conhecer o artista, ele está aqui no salão?” “Está”. E eu ouvindo aqui, né? Ela, muito elegante: “Olha, parabéns, viu? Eu vou ficar com a sua tela e tudo, quero fazer uma foto com você”. Ela chama o marido, quem era o marido? O meu incentivador da agricultura. E ele falou: “Opa, você é fenomenal, olha teu traço... tu estudou na Europa?” Eu falei: “Que Europa, moço? Nunca saí daqui. Sempre fui daqui mesmo”. “Mas as tuas cores...” e tal. E eu falei: “Você não lembrado de mim? Mas eu lembrado de você”. E ele falou: “Não, acho que eu não te conheço, não. Não tive essa sorte de te conhecer, não”. “Mas eu tive a sorte do senhor me conhecer. No começo da minha carreira o senhor foi no meu ateliê, o senhor foi um cara de sorte, você me viu começar, você me pediu pra eu plantar arroz. E eu te falei que você iria comprar uma obra, e você me comprou uma obra”. Meu Deus do céu. A cara dele murchou, quis morrer, acho que ele ficou muito mal. E eu me senti vingado. Não sei se eu fiz a coisa certa, mas naquele dia eu matei uma coisa ruim que ficou dentro de mim.


Z.S - De onde saiu o nome Tonneves da forma que é escrito?

Tn. - Tonneves saiu de uma fuga para não ser chamado de um nome tão longo. Eu venho de uma família tradicional, que tem uns nomes enormes em homenagem a parentes que ninguém sabe quantas gerações para trás existiram. O meu ficou “José Antônio Neves da Silva”. Então, depois tinha mais um Antônio e um José da família e eu falei, não. Mas fui para a pintura e assinei meu nome em uma tela e pegou a tela quase toda. Eu falei: “Encurta mais esse negócio cara, deixa menor”.


Eu optei pelo Neves do sobrenome da minha mãe e Ton do Antônio, do meu pai, aí ficou Tonneves. Junta os dois N’s e fica uma palavra só, com a cara de estrangeira.


Z.S. - Dos seus trabalhos existe uma obra que você considera de mais relevância entre todos que você já fez?

Tn. - Eu acho que pelo grau de dificuldade e pela proposta, Negro Cosme, do Centro de Cultura Negra. Negro Cosme foi um camarada que lutou contra a escravidão, ele era corajoso, libertava escravos e invadia as fazendas aqui no Maranhão. Quando me fizeram a proposta de pintar Negro Cosme foi um desafio, um retrato falado. Ele não deixou uma imagem ou uma fotografia, porque muitas vezes o herói de verdade não é fotografado, esculpido ou pintado porque não tem muito valor político. Aí eu falei: agora é minha vez de fazer um Negro Cosme legal. Eu fui pesquisar, negro maranhense e negro cearense, foi rico pra mim aquele momento. No tráfico negreiro, o Maranhão ficou com uma turminha pequena, o pessoal da zanga, ninguém queria. Só que perderam, porque era um pessoal que corria muito e tinha resistência a doenças. Chegavam quase todos vivos dos maus-tratos. E o Negro Cosme era uma mistura entre os bantos e essa galera pequena. Eu gostei de fazer esse retrato, aprendi muito ali. Se vocês ainda não viram, vejam ali no Centro de Cultura Negra, a tela original Negro Cosme foi um dos trabalhos mais interessantes.


Quadro Negro Cosme foi resultado de uma pesquisa detalhada (foto: divulgação)


Z.S. - Qual mensagem você quer passar com a exposição Lagrimas verdes?

T.n. - Lagrimas verdes, na verdade, é resultado de 28 anos de pesquisa e projeto. Fazia um planejamento, mudavam as situações e eu replanejava e refazia. Tive várias ideias, mas tudo começou quando eu resolvi fazer uma poesia, dando uma de poeta. Eu preenchi vários caderninhos escrevendo coisas, porque eu procurava na palavra a mesma coisa que eu fazia com as tintas. Eu pegava três cores e enchia uma mesa inteira de tonalidades de cores diferentes, só com aquelas três. E um dia eu pensei nisso com as palavras. Comecei a escrever e me saiu Lágrimas verdes, uma poesia que fala sobre ecologia, sobre o homem como intruso, rebelde. Ele fala da natureza como se fosse uma coisinha e ele fosse o centro do universo. Ele pode pisotear e fazer tudo o que quer porque é a natureza, como se ele não fizesse parte do sistema. Eu pensei: vou fazer isso aqui. Quando eu li, me emocionei, senti aquela poesia e falei: vou pintar isso aqui. Aí comecei, mas eu nunca chegava a ponto nenhum porque eu não sabia, não tinha capacidade ainda de uma acessibilidade maior de visualizar isso. Até que um dia, há pouco tempo, eu deixei de pensar naquela coisa do romantismo fraco, de sofrer muito, de chorar muito, de sentar e ficar acabrunhado, por que mataram ou queimaram alguma coisa, então o que eu fiz? Comecei a observar janelinhas pequenas de recomeço: o que acabou, acabou, mas tem alguma coisa para recomeçar? Tem, tá ali, então retrata, puxa pra cá, mostra a ponta que sobrou para fazer de novo.


Lágrimas verdes retrata isso, a possibilidade do recomeço. A devastação em si não, já era, então você vai ver um machado que acabou com tudo. Mas na ponta do machado tem um casal de beija-flor falando: “Ei, nós vamos começar outra vez".


Então, Lágrimas verdes, o legado é isso, a natureza sempre deixa um ponto para você ficar e não morrer junto com tudo o que você matou.


Tonneves se redescobriu como professor. (foto: divulgação)


Z.S. - Como foi o seu despertar como professor de artes?

Tn. - Eu sempre fui muito tímido, literalmente, e não começou na pintura.A questão de lecionar e ser professor acho que começou na arte marcial: eu pratico Kung Fu, a arte marcial chinesa, desde 1974. Eu comecei com 11 anos e quando eu tinha 16 passava por uma crise financeira muito difícil. Eu tive uma proposta: “Dá aula pra nós”. Eu achava horrível ter que dar aulas para as pessoas, ter que conversar com pessoas, e corrigindo. Isso pra mim era o fim do mundo, então conversei com alguns alunos, muito mais aqueles amigos, escolhi só os amigos para não ter que suando a ponta dos dedos de tanto nervosismo e tudo. E a coisa foi crescendo, a ponto de abrir uma pequena academia. E depois dessa academia, eu tive uma necessidade de melhorar um pouco os meus estudos de artes marciais, e fui para a União Nacional de Kung Fu, em Jundiaí, São Paulo. E lá foi onde, de fato, eu comecei a carreira de instrutor, professor, a duras penas. Era um seminário com 38 países, e eu era o representante do estado do Maranhão, número 51 da União Nacional. Eu tinha que falar para esse pessoal todo, todo mundo que estava na frente, tinha umas 300 pessoas no plenário, aí foi o fim do mundo para mim. Naquele dia eu morri várias vezes, e foi um choque tão profundo, tão terrível naquele dia, que acabou a timidez de interagir e conversar com alguém. Eu voltei já mais saliente, e hoje nós somos a Federação Maranhense de Kung Fu Wushu Sanda, profissional. Acabamos de trazer um campeão mundial na categoria de 58kg, enfim, temos um histórico. Meu filho, hoje, é um dos melhores instrutores do país, tenho o maior orgulho de falar. Meu neto tem nove títulos nacionais e tem só 13 anos de idade, já tem um internacional. E isso sobrou para o lado da pintura. Depois da minha primeira exposição individual houve interesse de alguém gostar: “Ton, dá aula pra nós”. “Meu Deus, não sei nem pra mim e vou dar aula pra vocês?” Formamos um grupinho bacana, gente boa, tudo muito amigo e daí começou. E, de lá pra cá, acho que já foram 30 e tantas turmas de artistas e graças a Deus deu certo. Eu não quero mais parar de ministrar aulas de pintura, só quando não aguentar nem mexer mais. Mas até lá eu quero dividir tudo o que a gente vai aprendendo, a gente vai buscando.


E o engraçado é que eu me tornei um artista um pouco melhor e mais experiente depois que eu comecei a ministrar aulas e interagir com os meus alunos.


Eu aprendi mais com os meus alunos do que de fato eu ensinei para eles. É muito rico isso, trocar ideia. Então foi por aí que começou: hoje eu já tenho outra profissão também, já é outro ofício. Hoje eu sou cuteleiro profissional, eu faço facas, eu optei por fazer obras de arte dentro do que eu já tinha das artes marciais, as armas orientais exóticas que não existem quase mais hoje.


Eu peguei esse filão de lá pra cá e estou fazendo três coisas atualmente: pintando, fazendo facas e dando aulas de artes marciais.


Z.S. - Como você encara a sua profissão como professor de artes a partir da sua própria trajetória como artista e as oportunidades oferecidas?

T.n. - Penso do artista que consegui ser, sair do zero e chegar aqui, que ainda tem muita coisa pra fazer, pra aprender, mas já é satisfatório. Eu já tenho obras em todos os países do mundo hoje, três estão no Vaticano. É uma coisa rara uma pessoa do meu patamar que tenha algo no Vaticano. E dentro de uma pinacoteca de alguém muito interessante, uma pessoa que ama arte. Veio no Maranhão, viu as quebradeiras de coco, e se encantou com tudo. Depois a pessoa que trouxe acompanhou-me e encomendou três obras das quebradeiras de coco, fiz, mandei e foi um sucesso total.

Mas isso eu não posso pegar essa cruz toda e ficar só pra mim. Eu tenho que reproduzir isso em outros artistas, eu tenho que ter outros Tonneves na vida que sigam melhor que eu, pra carregar essa cruz também. E o que acontece? Já tive alguns alunos que inclusive hoje expõem fora do país, já são artistas internacionalizados. Mas ainda não é bem por aí. Eu tenho que pensar que tem que produzir para Imperatriz, Imperatriz tem que respirar isso. É interessante, porque você chega em Lisboa e toda noite, em vários lugares, tem galerias abertas para todo canto. O pessoal se divertindo com arte, comprando arte, investindo alto, é muita grana, as galerias negociam volumes absurdos, bilionários por dia. Aqui não, precisamos fazer isso aqui. Agora chegou o Centro Cultural Tatajuba, abriu essas portas que estavam todas fechadas. Inclusive um desabafo aqui: a Fundação Cultural de Imperatriz trabalhou por um tempo, a gente teve algumas pessoas fazendo lá dentro alguns projetos, deu certo. E depois fecharam as portas e acabaram com a cidade sem dar satisfação, sem perguntar se podia, se iria fazer falta, se alguém gostava ou não gostava. Só fecharam, a política do matou tudo. Aí chega um Centro Cultural particular, de uma família, abre as portas e dá a possibilidade de a gente dar uma trabalhada boa. Fizemos uma oficina com 20 pessoas, duas turmas de 10, e a resposta foi extraordinária. Sinceramente eu com alegria mesmo de viver esse momento, totalmente satisfeito, e hoje eu aqui com dois artistas dessa safra nova, o Francisco Nascimento e o Pedro Marques. As pessoas falam muito de inclusão, é muito fácil falar de inclusão, agora incluir de fato é complicado, tem que se dispor. A gente comprou o cavalete para montar o ateliê e tudo, mas faltava o do Francisco, porque a situação dele é muito difícil, ele é cadeirante, tem o movimento só numa mão. E eu fiquei perturbado com aquilo ali. Peguei as medidas da cadeira dele, analisei o movimento do braço dele e fui fazer uma espátula na marreta. Arrumei uns paletes e fiz num domingo de manhã, até o finalzinho da tarde. Fiz a mesinha dele e tudo, e fui lá e passei para ele. Sabe aquela realização de poder ajudar de fato, de ver ele feliz porque ele tinha a espatulazinha dele? Tinha a mesinha pronta para trabalhar. Eu acho que se a gente não fizer isso, a gente não vai prestar para nada nunca. Espero que daqui uns tempos eu não faça falta, se Deus quiser vai dar tudo certo, porque vamos ter esses talentos aqui também. Então é o que eu sempre falo:


eu não quero sair de Imperatriz antes que eu veja Imperatriz cheia de artistas, pelo menos no meu segmento, pintando tela, fazendo bagunça, colorindo essa cidade.


Eu preciso fazer isso e essa é a oportunidade. Nós temos uma cidade rica em expressão, tudo aqui conspira a favor de um artista nunca deixar de ter inspiração. Imperatriz é fantástica.


Z.S. - Como você vê o cenário da arte aqui em Imperatriz?

Tn. - Bom, muito bom. Imperatriz é um celeiro de talentos natural. Imperatriz é uma mina, uma jazida, de tudo que você imagina de preciosidades tem aqui. Essa cidade é uma fusão da raça humana de uma forma incrível, é como se todos os valores humanos viessem para cá como se fosse um forno de fundição e se misturassem aqui. Então Imperatriz tem um poder que a gente que mora aqui não tem a mínima ideia do que pode acontecer, mas é muito forte. A arte para mim em Imperatriz é só uma questão de investimento. Alguém ter coragem de investir, mas como vai investir? Nós não temos um museu municipal ainda, nem algumas galerias pra expor, enfim, falta muita coisa. Só que o material que nós temos, o material humano, é uma coisa incrível. Eu recebi proposta há pouco tempo para ir para a Espanha, morar lá. Tem um camarada que leva umas telas: “Tu vem pra cá, que a gente tem todo o material que você precisa. Nós temos as melhores tintas”. E ele foi contar a história. “Não, eu sei, moço. Vocês aí são é Euro, é tudo, e tem história né? o lugar chamado Vinhedo. Eu falei: “Não, eu tenho uma missão aqui”. Eu ainda preciso ficar mais um tempo aqui, porque na Espanha eu seria só mais um, e mais um lá embaixo, no escalão terceiro ou quarto. Eu vejo outras turmas de alunos que tem agora, são 28. Quando eu olho para eles eu fico emocionado, cara, porque eu vejo: Tá lá todo mundo, se tivesse que montar um time eu iria montar o melhor time do mundo, é só aqui, não iria precisar buscar fora. Então a minha visão para a arte de Imperatriz é a melhor possível.


Z.S. - Explique como é o processo de comercialização de tela? Os quadros ficam em galeria, a negociação como ocorre?

Tn. - Isso é uma questão muito difícil, pela comercialização internacional. As obras devem ser catalogadas, registradas, e tem que declarar um monte de coisas burocráticas para poder sair do país. Pra entrar é fácil. Se você for nos Estados Unidos, na Europa ou em algum lugar, comprar uma obra e vir, é pouca coisa. Agora, pra sair daqui pra lá, ixi, haja paciência. Na época eu tive sorte da pessoa que veio para cá ser uma pessoa influente, politicamente falando. Ele só pegou as primeiras obras, botou na mala e foi embora, e depois disso não. Agora, para enviar um lote que mandei para Portugal e Espanha, você tem que declarar, fazer imposto de renda, fazer um monte de coisas. Tem que ter minha assinatura registrada e reconhecida, por causa das falsificações e isso pode gerar um problema sério. A pessoa pode me comprar uma obra, pagar um preço bom e nunca mais vê-la, no aeroporto vão pegar e acabar com a história, então não é fácil.


Z.S. - Qual a maior dificuldade que você encontra na sua carreira de artista?

T.n. - A dificuldade é exatamente material. Como a gente mora em um lugar que não tem tradição de abastecer o mundo dos artistas, é muito difícil encontrar tela, pincel, espátula, cavalete, enfim, tudo o que você imaginar de material para trabalho é difícil, sempre foi. Lembra que eu contei ainda agora do padre que tinha umas caixas de tinta que nunca tinha vendido? Continua do mesmo jeito. Eu fui buscar agora fazer o orçamento pra comprar oito telas nas medidas de 60x80 e não tinha na cidade. Então a dificuldade ainda está aí: não é mais aquela questão de valorizar o artista, de só querer comprar uma obra por R$ 100, isso aí já foi superado, agora é material. Para se ter uma ideia, um amigo meu foi agora em New York e me mostrou umas fotos de um shopping só para artistas, não tem outra coisa lá dentro, só pintura. Tudo que você imaginar para arte tem lá, as ferramentinhas para esculpir, enfim, é só para artista. E se você chegar e for identificado como artista profissional, você tem 46% de desconto em qualquer material que você queira. Além de ter o incentivo. Uma coisa que custa R$ 10 em algum lugar do mundo, quando chega aqui custa R$ 30, porque você é artista e tem como pagar. Então a dificuldade ainda está em acesso de material.


Z.S. - Percebi que você tem uma grande sensibilidade, acolhimento com as pessoas e eu acredito que muito disso vem da sua observação, da criação e tudo mais. Mas você deve ter aprendido muitas coisas com a arte, com a pintura.

Tn. - O que eu aprendi, muito assim, dessa questão da humanização via a arte, foi que nós somos a mesma coisa sempre, é quando eu recebi os primeiros elogios, quando eu ganhei meus primeiros prêmios. O meu primeiro salão foi o Salão de Arte Contemporânea Imperatrizense (Saci). Ganhei disparado no meio de pessoas renomadíssimas, e eu era o azarão, aquele cara que tava chegando e ninguém sabia quem era ele. Tinha muita gente boa. Aí eu fiquei me achando assim, aquele cara, eu ganhei da turma. Sabe? É como se eu tivesse nocauteado o [boxeador norte-americano] Mike Tyson naquela noite. Então eu percebi que aquilo me prejudicou muito como pessoa, e depois com o passar do tempo foi repetindo, fui sendo premiado, eu fui sendo requisitado. Se a pessoa não tiver cuidado ele fica um ser humano horrível, ele vai gostar do sabor da fama, de tá por cima.


E o que foi que a arte me ensinou? Que não, quanto mais eu aprender, quanto mais eu prosperar mais acessível eu tenho que ser, porque eu sou feito do teu contato, do contato dela, do abraço dela, do apoio dele, entendeu?


Hoje, um dos pontos mais fortes da minha vida como artista e como pessoa é a minha esposa, Leda Da Silva Neves. Nós temos 42 anos de casados já, ela é tudo que eu posso imaginar na minha vida de bom. Na minha vida como artista, como pessoa, é de fato a fábrica. Se eu tenho alguma qualidade quem fabricou foi aquela senhora. Tem me sustentado de uma forma impressionante, em tudo, melhores e piores momentos. Ela tem sido assim a minha âncora da vida, um Deus na minha vida. Aquela mulher, meu Deus, os quatro filhos. Agora nós já temos seis netos e uma bisneta, todo feliz da vida. Então assim: a arte está na vida e ela não pode ser separada das coisas da vida. Se a gente separar dessas coisas não é um bom artista. Pra completar o grande artista tem que ser um grande ser humano também. E ter seres humanos perto que possam também influenciar. Então evitar qualquer coisa de vaidade, mesquinharia. Ou você é um ser humano completo, ou você não é um artista que preste, não funciona duas coisas separadas. Eu me sinto hoje não na obrigação cativa, mas uma obrigação de resposta, de incentivar as pessoas e dizer: “Tenta de novo, bora outra vez”.


Z.S. - Sobre seus projetos e trabalhos, quais são as suas perspectivas para o futuro?

Tn. - O meu próximo projeto é falar um pouco da nossa cultura maranhense. Eu nasci aqui no Maranhão, em Pedreiras, em 1963, numa quinta-feira, nesse belo e maravilhoso estado.


Eu observo que nós temos aqui um cenário perfeito, nossos costumes simples, a herança do que o africano deixou, do que o índio deixou, do que o europeu deixou, foi deixando, foi ficando, estão nesses recantos por aí.


Eu gosto muito dessa cidade. Então as histórias que eu vivo eu percebo Imperatriz sofrendo hoje, se eu tivesse que pintar um retrato de uma Imperatriz simbolizando a nossa, eu talvez não gostaria de pintar não. Seria uma encomenda que eu não gostaria de aceitar, porque ela iria sair bem maltratada, bem feia, eu não gostaria de fazer não. Porque ela merecia ter um retrato até mais bonitinho, mas eu não vou nem fazer o retrato falado para vocês não chorarem. Ia estar machucada, porque é sugada demais. Eu fui em um lugarzinho aqui perto, um assentamento chamado Batata da Terra, no município de Senador LaRocque, há uns 200 km daqui, e naquele dia eu vi tanta coisa maravilhosa... Eu fotografei um cachorro que estava deitado perto de uma estaca de aroeira, numa cabaninha de palha, chamada de paiol, e o Seu Carlos, o dono do animal. Eu perguntei: “Seu Carlos, e esse cachorro, qual é o nome dele?”. “Esse daí é o Churrin”. E eu falei: “Seu Carlos, eu quero fazer uma exposição de arte e eu gostaria que o senhor me autorizasse pintar essa fotografia do seu cachorro”. E ele disse: “Ah, tudo bem”. Aí comecei a fotografar seu Carlos, o paiol do seu Carlos, fui fotografando o rio Pindaré, e estou com tudo isso pronto para fazer uma exposição. Então o próximo projeto será Os retalhos do Maranhão. O dia a dia, uma galinha dentro de uma cufa, não sei o que...tudo é cufa, tudo é uma palavra para o que é feito de palha. E tudo isso para mostrar no futuro, e deixar essas coisas, porque elas vão acabar, vão sumir, assim como outras coisas já desapareceram. Aqui na nossa região, praticamente tem coisas que você não ouve mais falar: um arroz branco com cuxá e carne assada, vocês já ouviram falar nisso? O cuscuz de arroz, feito da massa do arroz cateto, feito no pano passado no azeite de coco com cafezinho, é gostoso demais. Então essas coisas estão ficando chiques, é tipo assim uma coisa feita para mostrar para os outros, está começando a virar coisa de vitrine, porque estão ficando raras. Não é mais aquela coisa que tu enchia o buxo e você ficava por ali e nem ligava mais, tem que fazer para o turista ver, isso é perigoso.


Quando a gente começa a querer mostrar para os de fora o que tinha muito aqui é porque tá acabando. Então eu quero que através da minha arte as pessoas percebam um dia que teve aquilo ali.


Espero que a minha arte nunca sirva para isso, mas eu vou preparar, se um dia for preciso vai estar nas telas, se não existir mais no fogão, vai estar na tela. Mas eu gostaria que não fosse assim, é só um projeto. Ultimamente também fui convidado para uma posição que ainda tô aprendendo a saber o que vou fazer lá, a Academia de Letras, Ciências e Artes de João Lisboa. Fui convidado para ser um dos membros fundadores, estou lá agora, vou aprender a ser um acadêmico. Parece que pra ser artista é tão simples, mas não é. A gente passa a ser uma peça fundamental em algum lugar.


Colaborou na edição da entrevista o professor Alexandre Maciel .


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