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Publicações artesanais: uma cultura de papel

Criadores de fanzines e livros manuais relatam trajetórias


Nathielly Lima


As publicações artesanais, sejam fanzines, livros, ou panfletos, são uma forma de manter uma cultura, de compartilhar os gostos entre as pessoas. Ajudam a gerar identificação dos leitores com aqueles que produzem e escrevem, além de serem símbolos da liberdade de expressão, direito de cada cidadão e cidadã.


Por volta da década de 1990, o então adolescente imperatrizense Samuel Sousa, de cabelos longos, calça jeans e blusão que estampava bandas de rock, trocava fanzines, cartas e objetos sinistros, como restos de animais mortos. O intercâmbio era comum entre jovens que, como ele, eram fãs de rock metal extremo (heavy/black/death metal, grindcore, etc.) no Brasil: quanto mais pesado nas cartas/objetos, “mais fã” você era.


Sousa, 44 anos, é um exemplo local dos amantes da cultura de fanzines (publicação geralmente artesanal, com conteúdos voltados para um gosto ou cultura específico). Funcionário público, ele segue aficionado pelo gênero.


Lembranças da tosqueira


Em 1983, Sousa iniciou o seu primeiro fanzine, chamado Cadaveric Incubator (música da banda de metal extremo, Carcass). No vai e vem de tantas cartas sinistras de outros fãs do Brasil inteiro, ele conta que uma vez recebeu um rato morto e seco. A história foi aumentando, e rondava o boato entre amantes de fanzines que o rato seco foi impresso na capa de uma das edições do Cadaveric.


Perguntado se essa edição inusitada realmente existiu, Sousa negou, mas não descartou a possibilidade de outros zines de metal pelo Brasil já terem feito algo semelhante. A ideia era cada fã ser mais extremo que o outro, enviando coração de gato e assinando a carta com sangue do dedo, por exemplo.


Samuel Sousa colocando a mão na massa, no ano de 2000. (imagem reprodução)


“A gente era muito criança/pré-adolescente. Era comum enviar tosqueira dentro das cartas, porque fazia parte da mística de ser extremo. A música mais barulhenta, o visual mais agressivo, as letras mais afrontosas”, explica ele, que cresceu ouvindo artistas e bandas clássicas de rock, como Elvis Presley, The Beatles e Queen, por influência de seu pai. Mas foi no universo do metal extremo que realmente se encontrou.


Comprando fitas e discos de bandas desse estilo, Sousa se inspirou e editou o seu segundo zine, o Deusdemoteme (nome de uma música da banda curitibana Amen Corner), de 1983 a 2000. A motivação para a criação foi principalmente pela falta que ele e outros fãs sentiam de conteúdos e entrevistas nas revistas tradicionais de rock da época - Rock Brigade ou Roadie Crew, por exemplo – relacionados a bandas específicas do cenário do rock underground (a palavra significa “subterrâneo”, sinônimo de metal extremo).


Assim, Sousa afirma que o jeito era procurar nas mídias alternativas, elaborando e consumindo fanzines. E estes se tornaram uma forma de divulgação e apoio às bandas do gênero do Brasil e do mundo. “Esses meios alternativos funcionavam como cena de underground, a base de resistência de um som não tão comercial”.


O Deusdemoteme de início consistia em reproduções de releases, texto-divulgação dos lançamentos de uma banda para a imprensa, que eram recortados e colados na metade, aproximadamente, de uma folha A4. Além disso, ele foi introduzindo, ao longo das edições, resenhas de discos, entrevistas com as bandas que aconteciam por carta ou por fax com textos escritos à mão, de caneta, recortados e só depois colados.


À esquerda, a última edição, já com o nome de Deusdemoteme e, à direita, a capa do primeiro número. (imagem: reprodução)


A capa do zine era feita também de recortes e colagens de várias capinhas de fitas K-7 das bandas, por exemplo. Samuel, por ser e ter pai e irmãos jornalistas, passou a aproveitar os computadores das redações em que trabalhavam e foi experimentando aos poucos, diagramar a capa, um texto aqui e outro ali. Com isso, a diagramação do zine foi ficando cada vez mais profissional.


Uma edição que Samuel destaca é a de 1998, quando conseguiu, a partir de um convite por telefone, que o famoso cineasta e ator de filmes de terror, José Mojica Marins, o Zé do Caixão, escrevesse alguns contos. A seção veio com o nome de Contos do Caixão. “Satisfação e privilégio, resumem”, escreveu Sousa num pequeno texto de despedida pelo falecimento do cineasta, em fevereiro de 2020. Além disso, a edição contou com a entrevista da banda norte-americana Morbid Angel, referência e pioneira do estilo death metal.


As últimas edições, até a de 2000, ganharam um editorial escrito por Sousa, lista de colaboradores do Brasil inteiro, créditos para fotógrafos, seção de notícias, entrevistas com bandas nacionais e internacionais do metal extremo, resenhas de discos e de outros fanzines recebidos, além de um espaço de endereços de locais e pessoas.


Textos sobre bruxaria e satanismo – comuns na cultura do gênero – além de entrevistas sobre técnicas de guitarra e bateria eram relevantes para os fãs. “A ideia era você ofender cada vez mais, principalmente instituições religiosas ou religiões de modo geral”, relembra Samuel, cheio de nostalgia. Ele mantém uma coleção de fanzines e cartas da época de sua adolescência repleta de aventuras (sinistras).

Depois disso, o amante de metal extremo o transformou em website de mesmo nome, que durou até o ano de 2002.


Cacofonia: Uma voz para a literatura marginal


Discutindo com um amigo sobre qual seria o nome de primeiro zine, Ivila Renata, 30, recebeu um conselho: Cacofonia. A palavra, que significa um som desagradável que causa estranhamento e ambiguidade, soou como uma boa ideia, uma vez que ela gostava de expressões diferentes.


Era 2004 e Renata era estudante do curso de História, na então chamada Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e, por ter convívio com colegas da comunicação e do artesanato, entrou em contato pela primeira vez com um zine por meio de um outro escritor, que a apresentou à publicação Aperitivos, de Thiago Ramos, de Palmas-TO.


Naquele momento, Renata, hoje professora de história e moradora de Tucuruí – PA, se interessou bastante por esse tipo de material. “Me encantei, fiquei apaixonada, porque era um trabalho bem artesanal. Geralmente é feito com colagens, com recorte e o dele os desenhos eram feitos à mão.”


A então estudante, motivada por outros amigos, se inspirou e passou a editar o seu próprio fanzine. Cacofonia chegou a ter quatro edições, com cerca de 50 cópias cada, um trabalho bastante manual: imprimir alguns textos da internet, recortar pedaços de jornal, colar e fazer sobreposição de imagens e, por fim, xerocar.


Uma das ideias que Renata teve e pôs em prática foi uma entrevista simulada: fazer perguntas e ela mesma produzir as respostas, como se fosse do entrevistado(a), com autorização prévia. Ela relata que os leitores achavam engraçado, pois as respostas pareciam realmente ser das fontes originais. Além disso, havia um editorial apresentando a edição, textos sobre livros e filmes que Renata consumia, além de poemas seus.


Mas a principal intenção de Ivila Renata era divulgar poemas, contos e outros textos de escritores e escritoras marginais de Imperatriz e região. Consumir literatura desse gênero em blogs na internet era um dos seus hobbies e, ao lê-los, ela sentia vontade de compartilhar com mais pessoas. “Lia algo e ficava: ‘Éguas, preciso que outras pessoas leiam isso’...Mas como? No papel você tinha uma [maior] chance de ler”, relembra ela, que também mantém uma coleção de zines antigos.


Atualmente, a fundadora do Cacofonia afirma que em muitos temas de suas aulas ela solicita aos alunos a produção de fanzines uma vez que, na sua opinião, é um processo dinâmico de aprendizado. “Trazer material, fazer recortes, pesquisar conteúdos...é como se fosse um apanhado geral de um tema da história”, explica.


Ivila e seu amigo, Tiago, criador do Aperitivos, organizando a exposição de zines, em 2011. (foto: divulgação)


Em 2011, Renata e o amigo de Palmas, criador do zine Aperitivos que a inspirou, Thiago, promoveram um evento de mídias alternativas no espaço da UEMA. Estandes e varais com o Cacofonia e outros zines imperatrizenses e até de outras partes do Brasil, foram montados. A ideia era divulgar e promover palestras e rodas de conversa com criadores de fanzines e outras mídias alternativas. Um dos convidados foi Samuel Sousa.


Um espaço para a cultura imperatrizense


Em uma das noites do ano de 2014, a professora Yara Medeiros decidia, junto com os alunos participantes de um projeto de extensão do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), o nome do zine que seria produzido por eles mesmos. Escrevendo no quadro as ideias dos estudantes, eis que alguém gritou no meio da sala: “SIBITA BALEADA!”


A turma toda caiu na gargalhada e então Yara não teve dúvidas que aquele seria o nome. Sibita é o nome de um pássaro comum em toda a América, com a características de ter as pernas fininhas. Aqui no Maranhão, especificamente em Imperatriz, é usado como gíria para designar pessoas magrinhas, também das pernas finas, o que combinou com o próprio formato da publicação. “Ele é assim, ficou um A4 dobrado ao meio, bem fininho”, explica a professora, que conheceu fanzines por meio de oficinas em congressos de Comunicação, ainda quando era estudante.


Desde 2014, ano da primeira edição, o objetivo é proporcionar aos alunos uma experiência de escrita e apuração de reportagens sobre festivais, comidas, artistas...ou seja, elementos da cultura imperatrizense em geral.


Mais do que o processo de produzir, os alunos gostam mesmo da confraternização de lançamento do Sibita depois de escritas as reportagens, recortadas, coladas e revisadas. Nos lançamentos, a ideia é trazer elementos, comida e/ou artistas que estão presentes no zine.


“Quando a gente botou na culinária a panelada, encomendei uma bem grandona e aí serviu o pessoal. A Lília Diniz, por exemplo, foi uma entrevistada. Ela fez uma apresentação no dia com poesia”, detalha a professora, que confessou ter sentido falta das confraternizações em 2020 e 2021, nas quais os alunos participavam cantando e tocando violão e era tradicional o momento do abraço coletivo.


Mas, com o lançamento do site do Sibita, no dia 29 de junho de 2022, foi possível realizar um arraiá, resgatando os tempos de festa, com direito a chá-de-burro, pipoca, música ao vivo e até uma participação do ex-aluno do curso, Carlos Masa, ou DJ Masa.


A transição para o digital e a necessidade de distanciamento social trouxeram a desvantagem da perda do contato presencial nas entrevistas dos alunos. Mesmo assim, a quantidade e qualidade das matérias não foi alterada. “O Sibita realmente ficou arraigado na cultura do curso de jornalismo. Cada formato tem o seu charme”, opina Yara.


Durante 18º Salão do Livro de Imperatriz (Salimp), realizado de 8 a 16 de outubro, a edição 7 do zine impresso foi elaborada pelos participantes da oficina ministrada pela professora Yara, "Comunicação e cultura: a produção de fanzines na valorização das artes regionais", em conjunto com conteúdos da turma de jornalismo cultural, edição


Colagem da capa do Sibita produzida por Natalia Catherine, zine voltou a circular em papel no 18º Salimp. (foto: Edmara Silva)


O zine recebeu ainda a colaboração de textos da oficina "O poder da palavra escrita", da professora doutora Samanta Matos. A edição de arte também foi coletiva e contou com a criatividade dos integrantes do Love (Laboratório de Comunicação Visual e Edição Criativa), grupo de pesquisa coordenado pela professora Yara. Os lançamentos da edição 2 do Sibita Multimídia e do impresso aconteceram em 16 de outubro, no Salimp.


Agora as novas matérias, produzidas por turmas de Jornalismo Cultural durante o auge da pandemia da Covid-19, estão sendo atualizadas e publicadas no site do Sibita, a nova morada do passarinho. Confira aqui os detalhes dessa transição na reportagem Zine Sibita expande voo e pousa na web.


Criando, costurando e descobrindo


Na esteira de criadores manuais, surge a artista Lília Diniz, com seus livros artesanais. Escritora, atriz, ela escreve desde 1997. Conversamos sobre dois livros seus, Babaçu, cedro e outras poéticas em tramas e Sertanejares. Ambos com intervenção manual, ou seja, o próprio autor ou ajudantes fazem a capa, costuram a lombada, acrescentam objetos/desenhos relacionados à obra de forma manual.


No livro Babaçu, Lília conta que desde o processo de escrita dos poemas, ela não tinha ideia de como iria ser a obra no sentido estético. Primeiro, decidiu pedir à irmã que escrevesse o livro à mão, em papel de madeira, pois gostava de sua caligrafia. Como trabalhou em uma gráfica na adolescência, era fácil pra montar a boneca (simulação de como deve ficar a versão final do livro) e o interessante é que foi uma criação com as coisas que tinha em casa: faltou o grampeador para a lombada, então Lília buscou um barbante na garagem de casa e amarrou as folhas. Quando viu o resultado, ficou encantada e decidiu que as cópias também seriam assim.


Em Sertanejares, livro de poemas em sua maioria escritos durante uma viagem ao Piauí, o processo de criação também foi chegando naturalmente. O livro veio em formato de abano (instrumento costurado, de palha, usado para abanar fogo/fogueiras), pois lembra alguns trechos dos poemas nele inclusos. “Que nem abano abanando um fogo quase apagado”, recita Lília, relembrando. Já a ideia de intercalar poemas (escritos em papel madeira) e tecidos coloridos que lembram as festas juninas veio da necessidade de trazer mais vivacidade/alegria à obra: “São cores que aparecem dentro das manifestações de cultura popular”, explica a escritora.


Miolo de pote: cantigas e versos é outro projeto que ela começou a construir ao longo dos anos de 2003 a 2007, em apresentações pontuais, mas só voltou a avançar a partir de 2017. O livro Miolo de pote da cacimba de beber foi lançado originalmente em 2003 e é embalado em uma caixinha feita artesanalmente da fibra da palmeira de buriti, pelo próprio pai da autora. Os poemas foram adaptados para cantigas. Ao todo, foram 29 faixas tocadas e interpretadas em uma live transmitida em seu canal da internet, realizada com recursos da Secretaria do Estado de Cultura do Distrito Federal, no dia 16 de julho de 2022. Confira aqui: https://www.youtube.com/watch?v=v1gi5tL_3dE. O livro Miolo de pote também ganhou uma versão digital na mesma data, disponibilizada no site oficial da artista (www.liliadiniz.com.br).

Lília Diniz destaca que as ideias de intervenção manual dos livros não surgiram de forma planejada. É como se ela fosse descobrindo no próprio processo de criar. “Foram livros que chegaram assim de maneira muito intuitiva. De forma natural”, analisa a escritora. Ela provavelmente herdou do pai (foto), carpinteiro e artesão e da mãe, quebradeira de coco, a vocação para o artesanato.


O pai, por exemplo, participou do processo de costurar os abanos, a filha também a ajudou no trabalho com os livros...É o resultado do trabalho em família, tem a marca da minha família. Essa coisa da ancestralidade é forte, isso reverbera em mim: um sentimento de muita gratidão.”


Experiência e legado


Samuel Sousa reflete sobre a importância dos fanzines no cenário do rock underground: “A necessidade de criar uma comunidade, de pertencer a uma comunidade.” Já para Ivila Renata, o seu propósito com a criação de zines era “fazer circular, pelo menos entre estudantes, uma cultura de ler, de se interessar mais por poesia, de ver que você pode fazer poesia”.


Para a professora Yara Medeiros, eles são uma oportunidade de os alunos produzirem sobre a cultura de Imperatriz e experimentar. “Esse processo de produção, do início ao fim, de escolher as cores, escolher cada detalhe manualmente. É uma coisa mais liberta. Mais livre.”

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