Ritual da Festa do Moqueado enfrenta desafios
Povo indígena Tenetehara/Guajajara mantém tradição, apesar das dificuldades
por Vitória Guajajara
Muito mais que uma simples festa ou celebração de um povo, o rito de passagem de uma menina Tenetehara/Guajajara para tornar-se, enfim, uma mulher, sela o início de sua vida adulta e uma importante etapa em seu crescimento espiritual. Porém, o fato das jovens estudaram fora da aldeia, a falta de recursos financeiros, a influência do celular/tecnologias e o preconceito externo, acabam atrapalhando a continuidade da tradição da Festa do Moqueado, também conhecida como Festa da Menina Moça. Os mais velhos têm tido cada vez mais trabalho para reafirmar a cultura dentro da aldeia Juçaral, na terra indígena de Arariboia, Amarante do Maranhão.
A festividade é marcada por três grandes momentos: a Mandiocaba, a Caçada e a Festa do Moqueado. A alegria começa com o primeiro ciclo menstrual da menina, que, com o passar dos anos e a evolução, vem mais cedo hoje em dia, por volta dos 12 anos. Ela tem o dever de informar a família quando acontece e mostrar à mãe que realmente chegou o dia. “Aí é tipo uma festa já, né? Solta muitos foguetes!”, afirma Ana Cleide Pereira Guajajara, professora de Direito Indígena.
A partir da primeira menstruação, a jovem entra em um período de reclusão de oito dias, chamado “tocaia”. É como se fosse uma espécie de resguardo, que consiste em não poder sair de casa ou ser vista por pessoas que não de sua família, não tomar banho, e não pisar muito no chão. Costuma-se queimar um algodão para passar no solado dos pés da moça e forrar o chão para ela não tocá-lo diretamente.
No período de reclusão, meninas têm de seguir regras de resguardo. (foto: Márcio Vasconcelos)
Seu corpo também é pintado por inteiro de jenipapo, exceto o rosto. Essa fruta pode ser consumida madura ou usada de corante natural. Porém, para o povo Guajajara, é muito mais do que apenas uma tinta: a pintura fechada feita pela avó representa vida para quem se pinta. “A gente tem um ritual assim: pra menina crescer bem saudável, bota o jenipapo dentro da vasilha e olha a sombra”, declara Antônio Gomes Guajajara, escritor e professor de língua e direito indígenas.
Depois do período de oito dias, a garota sai da reclusão total, embora ainda tenha que permanecer em restrição alimentar. Não pode comer alguns tipos de alimento, como por exemplo carne de caça, até a finalização da festa, que acontece geralmente entre setembro e outubro. E mesmo que o ciclo menstrual da moça venha antes destes meses, terá que esperar aquele período mesmo assim, pois a festa costuma ser feita com muitas jovens, por conta do gasto que ela gera. Algumas vezes, a duração da espera pode ser de meses ou até anos.
Caçada e Mandiocaba
Antes da festa, a jovem recebe uma pintura aberta, também com jenipapo de grafismo indígena. Uma anciã fica com o encargo de processar a mandiocaba de forma ralada, que nada mais é que uma espécie de mandioca mais doce e com pouco amido, um cultivar originário do norte do Brasil. Após obter o líquido que o alimento libera, este é cozinhado para formar um mingau e ainda rende um beiju/tapioca.
Com o mingau quente, a garota se senta em cima do vapor para evitar cólicas. Ela também toma um pouco desse alimento para não ter dores de estômago futuras e, em seguida, o beiju vai para a cabeça, para prevenir dores e o cabelo branco precoce. “Tem muita gente que pergunta por que os indígenas não ficam com a cabeça branca assim bem rapidinho, né? Mas tem todo esse procedimento”, explica a professora Ana Cleide.
“Depois a gente vai, mata as caças pra fazer a festa delas”, relata Zezé Santos Zapu-y Guajajara, cacique da aldeia Juçaral. Os homens da família assumem essa função, pois é dela que vem a carne para o último momento, a Festa do Moqueado. Da mata eles trazem pacas, cotias, veados, lambu e pássaros nativos da região, o que acharem de melhor. Essas carnes ficam assando com o passar dos dias na brasa, sem sal e sem tempero, em cima de um jirau.
Moqueado
A abertura da Festa do Moqueado acontece entre as 16h30 e 17 horas, com oito cânticos principais. Depois da música que chama as meninas para festa, elas surgem vestindo uma saia longa vermelha, com os seios desnudos. Estão enfeitadas de colares, adornos, feito com penas, nos braços e na cabeça. Cobrem os olhos como se fosse uma franja e parte do seu cabelo, também vermelhos, simbolizam o entardecer e encerramento do ciclo de vida da menina Tenetehara.
Meninas Tenehara prontas para a festa, com seus trajes e adornos. (foto: Márcio Vasconcelos)
Cada uma tem um par, que é um ancião ou líder maior, que acompanha a menina até o final da festa. Durante a cantoria, a garota não pode falar, cantar, olhar para frente ou para os lados, para mostrar que tem honra e se tornar uma mulher de respeito. A música mais importante é homenageando a moça, como se estivesse cantando para uma aniversariante.
“Hoje os cantores inventaram muitos cânticos novos, mas tem aquelas músicas que já vieram lá do começo”, esclarece o escritor Antônio Gomes.
Enquanto isso, a carne do moqueado assada, nesse meio tempo, permanece sendo cozida na água, sem temperos. Essa fase se encerra entre as 19h30 e 20 horas. É quando a menina se recolhe para dormir, porém a cantoria continua para o povo da aldeia e os convidados, que geralmente são de aldeias vizinhas.
A festividade prossegue com outras canções, até as 4 horas da manhã, quando recomeçam mais oito cânticos tradicionais, que não são os mesmos da tarde. Por volta das 5h, as jovens são chamadas de novo e dessa vez elas vêm vestindo uma saia longa branca. Utilizam adornos também da mesma cor e o peito coberto de penas de gavião real. “Coloca as plumas de gavião em cima, como se fosse a blusa, prega com resina de amescla, que é a única coisa que cola”, explica Ana Cleide. A roupa branca simboliza o amanhecer do dia, saúde e alegria.
Cada menina é acompanhada por um ancião durante a cerimônia. (foto: Márcio Vasconcelos)
Antes da festa, a família manda fazer esteiras, que são estruturas de artesanato feitas com palha de coco, sobre as quais as meninas ficam sentadas no encerramento do ritual. Uma grande panela com a carne cozida fica do lado da jovem e a mãe distribui o alimento para os convidados em vasilhas. Às 7h30 para as 8 horas da manhã, o ritual é finalizado com o avô passando carne de tona, lambu pé roxo ou jaó, pássaros da região, feitos como um bolo misturado com farinha, nas articulações da garota. Ela come um pedaço dessa carne e a reclusão alimentar termina, assim como o rito.
Ao término da festa, enquanto ainda houver tinta de jenipapo no corpo da moça, é preciso adotar certos cuidados, como não tomar banho em lagos ou brejos. Nos tempos de outrora, depois desse processo, a menina já estaria pronta para casar, mas, com o passar dos anos isso já não acontece mais.
"Se ela quiser casar, dali para frente ela que escolhe o caminho" , expressa o cacique Zezé Santos.
Dificuldades financeiras
A improvisação se tornou necessária para manter a tradição viva. No passado, para a realização da festa, eram cultivados legumes, arroz, mandioca e não se dependia tanto das ajudas externas. Atualmente, para a festa de fato acontecer, além da família, é preciso contar com o auxílio de órgãos governamentais, com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), prefeituras locais e o Instituto Makarapy.
As roupas, os adornos, as esteiras e as comidas não saem de graça. Muitos desses apetrechos são trazidos da cidade até a aldeia, então é preciso elaborar um documento para requisitar a ajuda de fora. “Às vezes eles improvisam muita coisa. Por exemplo, quando não tem essa penugem [do segundo traje do ritual], aí eles improvisam uma galinha branca”, brinca o professor Antônio Gomes.
Roupas e adornos são custos que precisam ser estimados pela comunidade. (foto: Márcio Vasconcelos)
“Não é fácil pra fazer mesmo não, é despesa grande que a gente faz”, comenta Zezé. Por esse motivo, as festas não são mais individuais. Só quando muitas moças Guajajara entram no seu primeiro ciclo, tudo acontece para que todos da comunidade se ajudem nesse momento tão especial, que representa a transição simbólica de suas filhas.
Globalização
A professora Ana Cleide, que reconhece a importância das indígenas estudarem e crescerem no mundo acadêmico, para cada vez mais se reafirmarem perante a sociedade, não deixa de exaltar a etnia e compartilha que seus netos não sabem falar português, mas entendem. “Eu falo pra minha nora: ‘Não precisa tu falar português. É a segunda língua. A sua que você tem que valorizar”.
Os jovens também têm pouco se interessado em aprender as histórias e cânticos dessas celebrações. Assim, é um desafio orientá-los a não esquecerem a sua cultura e nem mesmo acabarem se deixando influenciar por pensamentos errôneos das pessoas de fora da aldeia. O professor Antônio reafirma a importância de manter a cultura viva. “Sem a língua, sem os cânticos, sem as histórias, as nossas tradições, que são a nossa identidade, não tem valor”.
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