“Sou um operário da arte”
Cantor e compositor Lourival Tavares reencontra Imperatriz e traz show
Texto e fotos: Katherine Malaquias Martins
Aos quatro anos, Lourival Tavares já ouvia cantores repentistas e as cantorias em sua cidade natal, Pio XII, no Maranhão. Escutava os versos do poeta cearense Patativa do Assaré, cantados por Marinho de Guerra, um repentista, e assim foi educando a audição e formando seu carinho pela música. “A minha família sempre me deu apoio… eu tinha um tio que tocava sanfona em casa, mas fui muito incentivado pelo meu avô, que sintonizava a Rádio Tupi e a Rádio Nacional...”, lembra Lourival. Mas foi em Imperatriz que o artista começou a sua carreira profissional, em 1978, quando a cidade vivia a efervescência cultural de uma geração que é sinônimo da música e da cultura locais.
Na época, os festivais contavam com jovens artistas como Zeca Tocantins, Neném Bragança, Henrique Guimarães, Erasmo Dibell e Lourival Tavares. Em dezembro de 2022, o maranhense retornou ao município, reencontrou amigos e apresentou seu novo trabalho, que revisita uma carreira de 38 anos. É possível conhecer boa parte da obra do compositor nos álbuns Um canto do Maranhão, um pé no asfalto e outro sertão (volumes 1, 2 e 3), disponíveis nas principais plataformas de áudio.
“Esse show que estou fazendo significa que eu tive uma vivência interiorana, somado à minha vivência de 38 anos de São Paulo, que também me moldou um pouco dentro da minha música”, explica. Respeitando a originalidade e a essência, o cantor foi ficando mais universal também com a música. Lourival acrescenta que fica difícil, após tantos anos, fazer canções falando apenas de Pindaré, Tocantins, ou São Luís. “São Paulo é uma cidade cosmopolita, e depois de tanto tempo não dá pra dizer que você é um cara só de interior”. Lourival afirma que começou a cantar em programa de calouros em 1970.
“Tinha surgido, na Jovem Guarda, um cara chamado Paulo Sérgio, que gravou uma música chamada: 'O destino desfolhou'”'. O tio de Lourival tinha uma loja de discos, onde ele ouviu e decorou a letra da canção. Acabou sendo inscrito pela família em um programa de calouros, chamado Clélio Silveira Show. “Cantei, fiquei em primeiro lugar no domingo, e durante um mês fiquei cantando essa música. E daí continuei cantando”.
O nosso amor traduzia
Felicidade e afeição
Suprema glória que um dia
Tive ao alcance da mão
Mas veio um dia o ciúme
E o nosso amor se acabou, ou, ou
Deixando em tudo o perfume
Da saudade que ficou
O destino desfolhou (1937) - de Gastão Lamounier e Mário Rossi
E assim continuaram as influências musicais na vida de Lourival: Jovem Guarda, Jerry Adriani e Paulo Sérgio, que o motivaram a ser artista, um cantor. Tropicália, Novos Baianos, Pessoal do Ceará, Belchior, Ednardo e Fagner, inspiraram as suas composições. “Pelo menos me disseram assim: essa música pode ser feita, faz sentido, tem público para essa música”.
Lourival detalha que o Maranhão é rico de três influências musicais. A vertente de São Luís e da Baixada, “uma coisa meio Norte, que é o Bumba-meu-boi”. Outra, da Região Tocantina, “que ouve muita música sertaneja de Goiás e MPB”. Por fim, a Região do Mearim, que absorveu a imigração de nordestinos do Ceará, Bahia, Rio Grande do Norte, Paraíba, para plantar arroz, em meados da década de 1930. “Lá se ouvia muito Divino do Espírito Santo e Mangaba (uma espécie de baião de viola, um repente que é do Piauí).
“Quando chego em São Luís, minha música dá um choque, porque é diferente, eu não tenho boi”.
Espírito rebelde
O amadurecimento musical do cantor aconteceu em um período conturbado da história do Brasil, nos primeiros anos da Ditadura Militar (1964-1985). O espírito rebelde de artista já aflorava na escola. “Eu só sou habilidoso em aprender naquilo que estou disposto a aprender. Agora, quando alguém quer me engessar pra aprender alguma coisa, aí eu tenho dificuldade. Comecei a estudar na época que professor tinha régua e palmatória, então fui torturado pra estudar.”
Lourival quando adolescente, participava de um grupo de jovens no qual o padre apresentava o viés de esquerda. “Então eu já tinha uma ideia fora dos padrões de direita”. Em 1973, quando servia o Exército, fez sua primeira composição “Amor de infância”, que narrava a relação de um amor proibido de uma prima. Em 1977, foi para o Rio de Janeiro para “batalhar música”, mas, segundo ele, não tinha ainda uma base profissional. “Acabei sendo servente de pedreiro no Galeão (Aeroporto Internacional do RJ). Passei sete meses, fui para Brasília e depois vim para cá [Imperatriz]”.
No Príncipe Teatro de Imperatriz – o Pritei, atual Teatro Ferreira Gullar, por ocasião do Festival Canto Aberto de Imperatriz (Fecai), sob a organização do Pedro Hanaye fundador do teatro, Lourival venceu as três primeiras colocações. Em primeiro lugar com a música “Glória a Deus no Céu e Chuva na Terra”, em segundo, com a canção “Geopolítica” e em terceiro, com um pout-pourri de MPB. “Aqui em Imperatriz foi meu começo… em Santa Inês como calouro, fiz parte do conjunto de música de Raimundo Soldado, que fez muito sucesso no universo brega da música, mas Imperatriz foi minha base, para a carreira profissional”, afirma Lourival. Como resultado ele foi convidado para trabalhar no jornal O Progresso na função de editor de texto, e continuava a cantar.
Em 1980, em São Luís, participou dos movimentos musicais da época, o que permitiu uma relação estreita com vários músicos, como Beto Pereira, Josias Sobrinho, Sérgio Habibe, Mano Borges e Erasmo Dibell. A partir de 1984 foi morar em São Paulo, onde gravou o seu primeiro disco, Procissão das formigas, lançado no programa Clube do Bolinha, na TV Bandeirantes.
Para ter seu primeiro disco lançado, Lourival conheceu um inglês criado em Portugal que trabalhava na empresa Basf. Ele tinha cinco fitas de amostra grátis. Uma ele enviou para a Globo, outra para a Bandeirantes e ficou com três. “Quando ele me ouviu cantar na casa dele, ele tinha uma espécie de som, muito bom, com microfone e tudo. Tomando cerveja, eu cantando, ele disse: ‘Vou gravar isso aí’. E gravou. Até hoje ele tem a fita de rolo da gravação guardada”. O inglês ofereceu uma ajuda: “Lourival, eu não tenho como bancar uma gravação pra ti. Mas eu posso te dar três fitas de duas polegadas Basf pra estudo, aí você vê o que você faz”.
Essas fitas se transformaram no primeiro disco do artista. A primeira, foi trocada por horas de estúdio para gravar o compacto, a segunda vendida para comprar um violão Gianini e a terceira ficou para a matriz do LP.
Procissão das formigas, disco com tom autobiográfico, é, segundo o compositor, seu álbum preferido: “Ele é atual, fala do trabalhador, e da minha chegada em São Paulo. Até a capa do disco retrata isso. É o Viaduto do Chá, com desenhos de formigas transitando como se fossem pessoas. Politicamente falando, são como os trabalhadores, que trabalham, trabalham, entra governo, sai governo, promessas vão e vem e essas pessoas continuam a Deus dará”, analisa.
Grande encontro em Imperatriz
Zeca Tocantins, poeta e músico de Imperatriz, confessa em momento descontraído em um encontro na Galeria Neném Bragança: “O Lourival é meu ídolo, a música dele educa”. Amigo e fã, elogia a coragem do artista. “Lourival, além de um grande artista, é um grande guerreiro, porque encarar São Paulo, eu não faço isso não, sabe? E Lourival encarou… ele sempre foi um cara inteligente, ele sabia que tinha esses desafios”.
O cantor e compositor Henrique Guimarães conheceu Lourival em 1978, quando ainda eram adolescentes. Nessa época, participavam dos festivais de música no teatro, em Imperatriz. “E eu escrevi uma música, o Bahia, nosso amigo, escreveu outra e Lourival escreveu três músicas. Quando terminou, que deram o resultado lá, Lourival pegou terceiro, segundo e primeiro lugar. Eu fiquei em quarto e o Bahia em quinto. Eu pensei: ‘Rapaz esse cabra é desgraçado’, o cabra é bom demais”. Ficaram amigos desde então.
Quando foi gravar Embiral, em São Paulo, foi Lourival que deu toda cobertura e apoio. “Nunca tinha cruzado a Ipiranga com a Avenida São João. É a coisa mais linda do mundo aquilo ali. Lourival me hospedou na quitinete dele, tudo pequenininho… eu tenho essa dívida moral com ele, muito grande. Não é nem financeira, é moral mesmo. Porque o cara deu um apoio fantástico pra mim, entendeu?”.
Henrique foi para São Paulo de caminhão e voltou de ônibus, pois não tinha dinheiro para fazer as produções lá. “Toda vez que Lourival vem aqui, ele me procura, pra eu ir para São Paulo é mais difícil… é uma coisa muito bonita”, comenta Henrique.
Nas palavras do amigo, “é uma coisa da adolescência pra cá, que não acaba nunca, a admiração que eu tenho como o grande compositor que ele é. O ‘Loro’ é um cantador. Quando ele entra no palco ele se transforma. Ele tem um carisma, uma expressão de palco muito fantástica”.
Lena Garcia, a mais jovem do encontro, embora não fazendo parte efetiva daquela geração, na opinião do próprio Lourival, a representa com muita propriedade. Lena conheceu Lourival ainda no Caneleiros (casa de música na rua XV de Novembro) e, de lá para cá, mantém contato por WhatsApp. Lourival mora em São Paulo há muito tempo, e vem ao Maranhão esporadicamente. Esse encontro de gerações da música, para Lena é um reencontro com um artista que admira. “Achei maravilhoso o convite e ainda reencontrar o Henrique, que já tinha alguns meses que eu não o via. O Zeca eu vejo mais vezes... esse é na verdade um grande encontro”.
Comments