Terreiro quebra preconceitos
Nossa Senhora de Santana é um espaço de acolhida e respeito
Karina Santiago
Rafaela Nascimento
Altar religioso com os santos Cosme e Damião, direcionado à celebração da data do dia 26 de setembro. (foto: Rafaela Vitória)
“Com minha chave de ouro, abro a mesa e o salão”. Este é o ponto cantado para iniciar a gira, o principal ritual da religião umbandista. Às quartas-feiras, em um local cheio de vida, todos estão vestidos a caráter, com roupas superiores claras e mulheres usando saias rodadas cheias de cores, com lenços também coloridos em suas cabeças ou troncos. O ritual acontece no Terreiro de Umbanda Nossa Senhora Santana e reúne várias pessoas da comunidade.
Ao chegar sente-se um cheiro forte, pois a defumação do lugar já foi feita. Todos andam em círculos ao redor da Guna, que é uma coluna central no meio do terreiro, ao som de tambores e outros instrumentos. Enquanto a mãe de santo, Juliete Silva Torres, 33 anos, puxa o ponto, uma canção religiosa cantada, as pessoas da roda lhe acompanham. “Abram a boca”, diz uma senhora que está apenas assistindo à celebração. Ela os repreende por estarem conversando ao invés de cantar.
O Terreiro Nossa Senhora Santana existe há mais de 25 anos. Foi dirigido inicialmente por Irenilde, conhecida por Mãe Cotinha, que em 2011 faleceu e passou seu trabalho para sua filha, Juliete Silva Torres, 33 anos. Ela foi preparada durante muito tempo para seguir na administração do local, pois a umbanda é uma religião que é passada a cada geração.
Mas Juliete não foi obrigada, teve a escolha de assumir o posto de mãe de santo deixado por sua genitora. Juntamente com seu esposo Celson Santos da Silva, 39 anos, eles administram o local. Juliete media o desenvolvimento espiritual dos adeptos da religião e Celson atua como dirigente litúrgico, ou seja, ele trabalha na área de estudos religiosos.
É bem comum a presença de crianças no local. Elas também giram ao redor da guna, mas de uma forma bem mais divertida que os adultos. “Olha, é o trio de macumbeirinhos”, diz Julia Maria, 12 anos, filha dos administradores do terreiro ao observar os movimentos de Marcos José, 7 anos, Lucas, 10 e José Antônio, 7.
Com o desenvolver da cerimônia, nota-se que cada um ali começa a se movimentar de forma diferente, parecem estar em outro lugar. “Ele está irradiando”, explica Milena Caroline. Ela acrescenta que irradiar é uma fase antes de seu guia espiritual entrar. Nesse momento ele está apenas pairando sobre seu corpo.
Os médiuns são convidados pela mãe de santo para cantar enquanto os outros a acompanham. Durante esses pontos percebe-se um profundo distanciamento dos médiuns que estão cantando e até de alguns que permanecem na roda.
“É como se...o anjo da guarda se afastasse da gente e encostasse o espírito. Então acaba como se você estivesse dormindo”, detalha Clodomiro da Silva, 48, que frequenta o terreiro há mais de sete anos.
Por isso alguns estão distantes e, após a visita do espírito, saem cansados, pois acabaram de ser acordados.
Todos apresentam sua própria forma de cantar e dançar. Estão vivendo um momento de profunda espiritualidade e parecem não perceber que existem outros no local. Há um clima de grande acolhimento entre os que participam e, ao perceber que alguém se cansou, de imediato algum dos ritualistas oferece água e usa de palavras de conforto.
Com a chegada da meia-noite, após a maioria guiar os outros durante os pontos e todos voltarem para seus estados iniciais, finalizam com as orações do Pai Nosso e a Ave Maria. Com aparência cansada, mas visivelmente calmos e felizes, os participantes se retiram do salão após reverenciarem os altares. Vão se alimentar e conversar todos em clima bem harmonioso. Alguns se separam para assistir ao jogo que estava acontecendo no dia. “Sou Flamengo e Lula”, afirma Julia Maria, ao fundo. Aos poucos, alguns vão partindo e pedem a benção de Juliete para voltar para suas casas.
Limpeza espiritual
Na noite de 21 de outubro, no Terreiro Nossa Senhora de Santana, os visitantes começam a chegar para participar da Jurema, que ocorre todas as sextas-feiras, das 20h às 21h. No portão de entrada, uma senhora desce de um carro preto, apoiada em sua bengala. É notável sua expressão de dor ao caminhar, enquanto ela se direciona até o local onde são feitas as sessões e celebrações.
Altar com imagens de entidades religiosas colocada no centro do salão do Terreiro de Umbanda. (foto: Rafaela Vitória)
De dentro da sua casa, mestre Celson pede a um rapaz que batuca em seu tambor para que vá acomodando as pessoas que estão chegando, pois logo iniciará a celebração de hoje. O ambiente está escuro e o aroma de incenso paira no ar. Todos estão sentados em bancos que foram colocados em forma de um círculo. No centro, posiciona-se um desenho de algumas estrelas e um círculo, ambos feitos com giz branco. Além de dois potes de barro que contém alecrim, arruda, alfazema e guiné, outro com um líquido amarronzado feito do pau de jurema, além de sete velas verdes colocadas uma em cima de cada estrela. E, dos lados direito e esquerdo, ramos de folhas para o rito.
Com todos acomodados em seus assentos, Celson chega, vestindo uma calça azul e uma blusa branca com azul com uma frase nas costas: Festejo de 2022 e algumas imagens estampadas na frente. Ele carrega em sua mão uma espécie de mini incensário, e logo dá início à sessão: “Boa noite a todos, quero primeiro agradecer aqueles que estão aqui pela primeira vez e sejam bem-vindos”.
“Ô Maranhão é terra da macumba, ô Maranhão é terra da macumba”, se ouve ao fundo um grupo de jovens tocando tambor e cantando. Após ser interrompido, o mestre Celson chama a atenção deles pela janela: “Eii, vai começar a sessão aqui”, alerta, conseguindo cessar a cantoria que vinha de fora do salão. “Rezar ninguém quer, né?”, questiona a médium que está ao lado de Celson.
“Quero pedir para vocês, que possam vibrar por todas aquelas pessoas que não podem estar aqui hoje. Pessoas que estão nos hospitais, que vocês conhecem, que não conhecem também. Toda e qualquer pessoa que poderia estar aqui e não pôde estar, que vocês sejam os intermediários, que vocês sejam a ponte que vai conduzir essa energia de cura”, incentiva o mestre.
Celson acredita que todos são médiuns e precisam da espiritualidade. “Além de servir a espiritualidade, a principal servidão é com a humanidade através da espiritualidade”. Alguns conseguem lidar sozinhos e outros precisam do terreiro ou de locais que aprofundem essa mediunidade.
CHIC, CHIC, CHIC. O barulho do maracá toma o salão acompanhado do início do ponto para a sessão: “Vou abrir minha Jurema, vou abrir meu juremar”, começa Celson, que agora não canta mais sozinho, todos estão em uníssono. “Com as forças dos nossos guias e do meu pai Oxalá”, respondem, cantando.
A sessão tem o nome de Jurema, por ser a guia espiritual que acompanha o mestre Celson. No canto da parede estão todos os médiuns, com suas vestes brancas e guias em seus pescoços. Alguns ali esperam para receber os seus espíritos guias para abençoá-los.
Celson pega o pequeno incensário e uma vela branca já acesa, acomoda um punhado das ervas que estavam postas nos potes acomodados no interior do círculo desenhado, coloca dentro e põe fogo com a vela. Ele vai passando de pessoa em pessoa para limpá-las com a fumaça. A música cantada dessa vez é outra: “Defuma com as ervas da Jurema, defuma com arruada e guiné. Alecrim, alecrim e alfazema, vamos defumar filhos de fé”.
Ele faz o processo de defumação duas vezes em todas as pessoas ali presentes. A primeira, com o incensário e a segunda vez com um cachimbo, no qual ele sopra a parte de cima onde fica a erva e a fumaça sai do local de onde seria puxado o fumo.
Uma moça ajuda o mestre, distribuindo pequenos copos de plástico enquanto ele recolhe o líquido da planta jurema que está no pote preto. Depois de encher os recipientes, todos bebem em sincronia. Celson segura o pote maior com o líquido e começa a despejá-lo na perna da senhora que está com a bengala. Logo após, se dirige ao centro, onde um homem com o pé machucado, inchado, o aguarda para fazer o mesmo processo.
“A sensação de limpeza traz paz para o corpo, você se sente leve tanto fisicamente quanto espiritualmente, todos deveriam participar da sessão de descarrego”, conta uma das repórteres ao participar do ritual.
As crianças ajudam, recolhendo os copos usados, e depois voltam a tocar seus maracás no ritmo das músicas. Os filhos de jurema são chamados a cada ponto cantado e os sete caboclos começam a irradiar nos médiuns guiados por eles. Celson vai colhendo folhas dos ramos que estão colocados no centro, e as entrega aos médiuns, que abençoam os presentes.
O mestre pega os médiuns que estão manifestando os espíritos pela mão e os leva para os participantes que serão benzidos virando de frente, de costas e às vezes ficando de joelhos. A médium loira, que usa um turbante roxo na cabeça, é levada por duas pessoas para o centro do círculo, e se senta em um toco de madeira usado como banco. Ela parece benzer o pé de um homem que está todo de branco. Em sua mão, com movimentos tremidos, ela segura uma vela que pinga a cera quente a todo instante.
Já se aproximando do fim, os médiuns que manifestaram vão voltando ao seu estado normal. Com a ajuda dos que não foram, eles fazem um gesto segurando as mãos em forma de cumprimento e depois encostam ombro com ombro.
O mestre agradece a presença de todos que puderam estar na cerimônia e encerra com o Pai Nosso e o Credo. As pessoas vão saindo do salão, desejando boa-noite, e aos poucos vão ficando somente os médiuns e o mestre para uma reunião. O Terreiro de Santana termina mais uma celebração.
Comments