Entre lendas e mistérios
Diversos relatos permeiam o imaginário popular de Imperatriz e região
por Laécio Rodrigues
O vento frio soprava na madrugada. Carlos saía de casa para esperar o ônibus da empresa, que passava próximo de onde morava. Ao longe, ele avistou uma mulher vestida de branco parada na esquina e seguiu seu caminho que, consequentemente, teria que passar ao seu lado. Carlos percebeu que a figura feminina continuava parada, parecia uma estátua, mas ele continuou andando. Ao chegar mais perto, cumprimentou de forma cordial: “Bom dia”. A mulher então se moveu, revelando seu rosto pálido como uma vela, e ele viu que ela tinha olhos negros que refletiam as luzes dos postes ainda acesos. A boca da criatura fantasmagórica se abriu, e um grito aterrorizante ecoou pela rua vazia. Carlos, todo arrepiado, assistiu a figura se transformar em uma espécie de névoa e sumir misteriosamente na sua frente.
Damas de Branco são aparições fantasmagóricas de jovens que morreram de formas trágicas. (imagem: Laécio Rodrigues)
Histórias como essa estão por todas as partes, datadas de muitos séculos e sem uma origem aparente, com suas aparições assustadoras e desfechos trágicos. Imperatriz, como toda cidade, tem suas lendas e mistérios. André Lima, mestre pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), é o criador da página do Instagram Imperatriz Fantasma (@imperatrizfantasma), a primeira voltada a coletar e contar os mais diversos e misteriosos relatos. É conhecido por lá como Coveiro, um personagem inspirado em séries televisivas como Os contos da Cripta e Creepshow, ambas da década de 1980.
O título da página surgiu para ser simples e de fácil identificação. "Queria um nome que brincasse com essa finalidade de sentidos, tipo: Imperatriz, a cidade, e fantasma, que seria o foco. Imperatriz fantasma, como se fosse uma imperatriz morta, fantasmagórica", revela André. A página foi inicialmente criada para sua pesquisa de doutorado, que estabelecerá um comparativo entre regiões, causas sociais e culturais que levam a conduzir esse tipo de narrativa. Ao longo do tempo, André percebeu que sua coletânea de relatos é fundamental para a cidade. “O foco inicial foi a pesquisa, mas com o tempo isso aumentou. Fica mais para a própria cultura daqui, para Imperatriz, para o povo ter esse registro”, argumenta.
Relatos inspiradores
João Marcos dos Santos Silva, escritor, jornalista e mestrando pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), reuniu algumas histórias misteriosas para compor sua nova obra literária de fantasia, chamada Curacanga. Com enredo situado na época da construção da rodovia Belém-Brasília, o livro teve o seu pré-lançamento no dia 14 de setembro, na 27ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo.
O escritor explica como uma lenda se tornou a inspiração para o título de seu novo livro. “Curacanga é uma mulher que tem o poder de separar a cabeça do corpo às sextas-feiras. A cabeça dela vira uma bola de fogo que assombra as pessoas na cidade. Isso é um conto bem característico da baixada maranhense e do centro-oeste do Maranhão. Aqui na nossa região, tem algumas variantes, como bola de fogo, ou uma luz que aparece no meio do mato”.
Em 2021, quando coletava depoimentos para o livro-reportagem de sua autoria que conta a história da sua cidade natal, João Lisboa - MA, À Sombra da Gameleira, João encontrou um senhor chamado Geraldo, então morador do povoado de Vavalândia, em Itinga (MA), que lhe relatou três histórias misteriosas.
"Quando a coruja sobrevoa os céus, só significa apenas uma coisa: morte" (imagem: Laécio Rodrigues)
A primeira tratava de um homem chamado Zé das Cordas, que bebia muito e fazia baderna. "Todas as pessoas que prendiam ele na cadeia ou qualquer lugar, de forma milagrosa ele se soltava e voltava a beber de novo”, explica João. A segunda história remete a uma fatalidade na cidade, envolvendo um rapaz que morreu depois de uma partida de futebol.
“Enterraram, só que por acaso, muito tempo depois, foram revirar na terra e, quando tiraram o corpo dele, estava intacto, é um fenômeno que chama corpo incorruptível”.
Um abatedouro próximo ao cemitério da cidade é o cenário da terceira história. “Em uma das ocasiões em que uma pessoa foi abater uma novilha, ela saiu correndo praticamente cortada ao meio”.
João Marcos acredita que histórias como essas são fundamentais para a cultura e identidade da região. Elas ajudam a perpetuar figuras e imagens do folclore local, se adaptando ao longo do tempo e refletindo a realidade e o cotidiano das pessoas. Além disso, essas narrativas inovam e enriquecem o imaginário popular, permitindo que a comunidade se veja representada em seu próprio imaginário. “Essas histórias ajudam a entender como a nossa sociedade se configura. E a gente não se atenta para isso, porque está muito afogado com referências de outros lugares, que constroem o nosso espaço, ao invés de nós construirmos esse espaço", defende.
Folclore fantástico
Ao longo do rio Tocantins, não é difícil encontrar pescadores ou moradores que já ouviram falar de “fenômenos” estranhos. Adão das Chagas Martins, conhecido como Adãozinho, é pescador em Imperatriz desde 1962 e relata que, desde que iniciou na pesca, sempre ouviu histórias envolvendo criaturas fantásticas.
“Diziam que tinha um negro d’água, quando eu cheguei aqui já existia essa história. Eu pescava dia e noite e nunca vi” conta. Relatos de uma cobra gigante, a boiuna preta, que vive ao longo do rio e mede em torno de 250 metros, ainda são frequentes.
“Me diziam que tinha um boto que era casado com uma mulher lá em Itaguatins [Tocantins], e tinha um filho com ela”, conta o pescador. A figura do boto, com sua capacidade de metamorfose humana, simboliza não apenas os mistérios das águas amazônicas, mas também a relação íntima entre os seres humanos e a natureza. Muitos moradores ribeirinhos acreditam piamente nesses contos, os transmitindo de geração em geração. “Diziam que botos pegavam os pescadores quando o barco virava e traziam até a beira pra salvar. Mas o que acredito é que sempre roubam os peixes da rede, tinha que pular em cima deles pra que saíssem. Pessoal da pesca mais antigo que eu aqui em Imperatriz, me contava que essas coisas aconteciam mais quando o rio estava cheio. Nunca vi nada, mas às vezes sentia um pouco de medo”, relembra Adãozinho.
O boto esconde um segredo. Na lua cheia ele emerge das águas, transformado em um homem. (foto: Laécio Rodrigues)
Na visão de João Marcos, as histórias que são transmitidas de forma oral, perpetuam algumas figuras conhecidas do folclore. Mas às vezes pode surgir um relato totalmente novo. “Tem as narrativas que são contadas de forma oral. Tem muita essa coisa da pessoalidade: 'Eu vi’, ‘Eu vivi’, ‘Eu estava caçando’, ‘Eu estava em casa’, ‘Eu ouvi o barulho’, ‘Eu vi o vulto'. Então é muito isso, faz parte de nós.” destaca o escritor.
Apesar de se transformarem ao passar dos anos, essas narrativas não perdem importância, e ainda precisam ser preservadas para gerações futuras, como argumenta André Lima. “Esse foi praticamente o foco da minha dissertação de mestrado. Apesar de ter essa transformação toda, isso serve como registro cultural de uma sociedade e de uma comunidade”, comenta o pesquisador.
João Marcos destaca que teve a ideia de trazer para a narrativa de Curacanga histórias que ouviu no interior do Maranhão, por esse motivo. “Foi justamente pra tapar esse buraco, de forma meio modesta. De tentar trazer narrativas de fantasia da nossa região que conversam com a nossa identidade e nosso dia a dia”. Ele ressalta que nos próximos anos, muito do que se fala sobre fantasia, horror e gótico na região, vai ser elaborado de forma literária pelos escritores e demais artistas. “Estou bem atento a esse cenário e espero que ele aconteça e se perpetue”.
Lendas regionais
A lenda urbana mais famosa de Imperatriz é a do “Diabo da Broadway”, já contada aqui no Sibita. Esse é também um dos relatos mais recebidos na página do Imperatriz Fantasma, como confirma André.
“Veio muita gente falar comigo, que sabe que sou eu que estou por trás da página: ‘Poxa, André, isso aí é verdade. Aconteceu tal coisa que apareceu, a menina desapareceu’. Todo mundo conta, mas o pessoal evita divulgar, não sei porquê.”
Mas há outros relatos históricos que ainda rodeiam o imaginário popular da região. Na década de 1970, teria ocorrido uma cadeia de acontecimentos ufológicos entre Maranhão e Pará, chamada “Operação Prato”. A suposta operação militar, realizada pela Força Aérea Brasileira (FAB) para investigar avistamentos de Objetos Voadores Não Identificados (OVNIs), durou quatro meses. Os relatos dão conta de luzes sugadoras de sangue, apelidadas de “chupa-chupa” pelos populares, que teriam deixado mortos e feridos na época. Tudo foi amplamente divulgado pela imprensa e está arquivado por pesquisadores do caso em um site dedicado ao tema.
A "Operação Prato" é considerada um dos eventos mais importantes da ufologia mundial. (imagem: Laécio Rodrigues)
Na mesma época, na região de Imperatriz, houve um relato que foi ouvido por André antes mesmo da criação de sua página: “Um amigo, que é imperatrizense raiz mesmo, da gema, de gerações e gerações daqui, me contou histórias do avô dele, que possuía uma fazenda nessa região, de ter contato com esses globos voadores de luz. E bate com as datas que aconteceu a Operação Prato”, analisa André.
Ao ouvir cada uma dessas histórias, lembre-se de que está participando de uma tradição milenar, um elo na corrente da história que conecta o passado ao presente e garante que a cultura de Imperatriz continue viva para as futuras gerações. E atenção, quando estiver andando sozinho pelas ruas: não olhe para trás.
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